Quando era piá de tudo aqui em Curitiba, minha rotina matinal sempre foi a mesma. Pegava o jornal no portão em frente de casa e tomava o café da manhã lendo meus colunistas preferidos. Se alguma formação literária tive na meninice, foi assim, para o bem e para o mal.
Quando me perguntavam “o que você quer ser quando crescer?”, nunca soube responder, nem desconfiava que no fundo do coração me bastaria escrever colunas de jornal. Pois cresci, acho, e cá estou, colunista do mesmo jornal da minha infância. Ora (direis) realizei estrelas! Sabe que até hoje não tinha pensado assim, nessa coisa de conquistar um “sonho de criança”? Ou melhor, até a quarta-feira, dia 12 de dezembro de 2018.
Curitiba amanheceu como nas minhas manhãs de finais de campeonato dos anos 80. Era gente por todo lado vestindo o manto rubro-negro, confiante na vitória, criando uma atmosfera festiva, coisa rara por aqui. Mas foi só lá pelas 5 da tarde, quando descia a Brasílio Itiberê com dois grandes amigos, rumando para um boteco qualquer aguardar a hora da partida, que me caiu a ficha.
De todas as colunas que eu lia quando guri, nenhuma vinha antes das esportivas; nenhuma, nunca. E, dessas, amava mais os cronistas que sabiam transformar cada jogo em uma história inesquecível. A ficha que me caiu é que eu vivia, naquele momento, naquele dia e por toda a noite, uma dessas histórias e que eu tinha a oportunidade de tentar contá-la, de ser quem eu mais queria ter sido. E tanto fazia se ganharíamos ou não o jogo, o título, porque ali eu já ouvia estrelas!
Enquanto estava no bar, era impossível não lembrar do meu pai morto, que faria 70 anos no dia seguinte. Embora fosse coxa (minha mãe é athleticana; logo, mais fanática; logo, sou athleticano), jamais se negou a me levar aos jogos do Furacão. Lembro de irmos à antiquíssima Baixada, num jogo daqueles, acho que contra o Londrina em 82, quando estávamos havia mais de década sem título. Lembro do estádio abarrotado, impossível de entrar, um mar de gente na praça do lado de fora, ansiosos e confiantes, como nessa quarta, dia 12 de dezembro de 2018.
Não conseguimos entrar, porém, como entramos para assistir ao antológico Atlético e Flamengo no Brasileirão de 83, que é até hoje (e desconfio para sempre) o recorde de público no Couto Pereira. Anos depois, lá estávamos nas inferiores da Mauá, num Atletiba eterno (quais não são?). Eu, quieto, torcendo retorcido em silêncio na torcida verde-pálida, até que numa escapada anotamos um tento e não me aguentei, levantando e gritando gol. Meu pai me olhou em pânico, levando-nos, eu e meus irmãos, embora. Se fosse hoje, dificilmente sairíamos sem apanhar. Ria sozinho na mesa do bar com essas memórias, copo cheio mais uma vez, lembrando de quantas vezes meu velho enfrentou também o Pinheirão para me levar assistir ao Atlético contra os Matsubaras da vida. Vimos até o gol de nuca do Manguinha, quem lembra desse? Não sei o que era pior: assistir a jogos no Pinheirão ou na torcida adversária num Atletiba, sinceramente.
Mas não se engane, estou longe de ser um fanático, muito menos fanatiquense. Faz alguns anos nem torcer direito eu ando torcendo. Mas não me culpo. Tirando finais como esta, a chatice impera nos estádios, especialmente na Arena. Começou com a história de cadeira marcada e a consequência de assistir aos jogos praticamente sozinho, sem os amigos de sempre ao lado. Daí proibiram a cerveja, que dispensa comentários. Depois veio a marcação qual gado dos torcedores com a tal da impressão digital, impedindo que gente como eu, sem condição para manter várias cadeiras, pudesse revezar o uso das duas que tinha para levar meus filhos ou algum amigo. Não raro ia aos jogos, mas preferia assistir no televisor de algum bar do lado de fora, entre amigos e com cerveja. Daí para desistir de ser tratado apenas como um tolerado pela gerência era questão de tempo. Em dezembro do ano passado deixei de ser sócio, ter cadeira, optando por ir apenas quando e se houvesse um jogo que valesse muito a pena, como o desta quarta-feira, dia 12 de dezembro de 2018.
Mas não fui a esta final épica. Até tive a oportunidade de comprar um ingresso, mas desisti. Queria ver com meus filhos, queria que tivessem uma memória semelhante à que tive com meu pai em 85. Era em torno de meia-noite e meia quando Gomes converteu o pênalti que deu o título de campeão brasileiro aos coxas. Eu tinha 9 anos e, embora atheticano, ali torci pelo meu pai. Fomos à Cândido de Abreu ver os jogadores passarem no caminhão de bombeiros, numa noite festiva e que me marcou pela alegria do meu velho. Ele via estrelas! E eu queria que meus filhos também as vissem em mim e fui para casa.
Mas se viram estrelas, não sei. Meu nervosismo era tanto que desconfio nem as estrelas me suportaram, só retornando para devolver a bola daquele pênalti… Ah, aquele pênalti! Fosse eu um Nelson Rodrigues escreveria uma crônica somente sobre aquele momento, aquele momento de apocalipse e gênesis conjuntos, uma nova era que aquela bola criava ao passar por cima do travessão em direção às estrelas, aquelas. Era impossível perder, os deuses do futebol, quando sentenciam, cumprem. E veio a disputa por pênaltis, como a de 85. Em que lugar do sofá meu pai estava sentado, se é que conseguiu ficar sentado? Ele rezava incessantes Aves Marias e Santos Anjos, como eu?
Não sei se vocês sabem, amigos, mas a última crônica escrita por Nelson Rodrigues foi depois de um título do seu time de coração. Mas, muito adoentado, não podia assistir à partida por determinação médica. Seu filho era quem lhe avisava os lances que iam acontecendo. Quando o título foi consumado, imediatamente Nelson se levantou e foi à máquina de escrever. Mas não conseguiu datilografar, tendo de ditar a crônica para seu filho, que ganhou o título: “Fluminense Campeão Demais”.
Na época, creio que pouca gente não sabia que o advérbio “demais” significava “de maneira muito intensa”, não apenas uma quantidade excessiva. Empresto o título do mestre para a conquista athleticana porque expressa com precisão o que foi essa conquista. Como escreveu o mestre na sua crônica de despedida: “Foi uma doce e santa vitória. Vocês viram como aconteceu o nosso triunfo”. Vocês também viram ou ficaram sabendo como o Athlético foi campeão demais. Desde a véspera, com a mudança de escudo, mascotes, uniformes e o retorno à grafia raiz, o belo Athlético, que agora não precisa de complemento escrito para que todos saibam quem é, quem somos: Athlético só tem um. Desde essa véspera, passando pela chegada do time ao estádio, numa espetacular recepção da torcida, pelos pênaltis todos, pelo recorde de público da Arena, pelos vídeos tantos de pais e filhos celebrando estrelas madrugada afora. Como eu e meus meninos. Como eu e meu pai coxa, que de uma delas sei que me sorri, feliz pela conquista athleticana, tenho certeza.
Infelizmente, ele não viveu para ler uma coluna minha nesse cantinho aqui da Gazeta do Povo. Só posso imaginar como demonstraria (dificilmente diria com palavras) seu orgulho. Porque sei que assim se sentiria, ainda que eu não seja lá essas coisas. No próximo dia 28 fará cinco anos de sua morte e na quinta, 13 de dezembro de 2018, seria seu aniversário de 70 anos, o dia que começou com o Athlético sendo campeão demais. Parabéns, meu pai. Que essa coluna lhe chegue como a bola daquele pênalti colombiano chegou para mim.
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