Da minha janela vejo um cemitério. Costumo escrever defronte a esta vista, fazendo pausas para mirar por sobre os túmulos. Também tenho uma igreja por vizinha, daquelas que ainda tocam os sinos para avisar das horas e na do Ângelus conseguem calar até os ruídos dos escapamentos estourados. Pouco rezo por aqui, pois da santidade ainda estou (bem) longe, e, do pouco que rezei, nunca foi em comunhão com essa oração permanente a enlaçar esse lugar. Um dia tentarei.
O cemitério costuma ficar vazio na maior parte do tempo, com poucos vivos visitando. Só enche quando há velório grande, o que descubro pela dificuldade súbita de estacionar o carro na região, ou no dia de finados, e na sua véspera, como na sexta passada. Lá estavam várias pessoas com baldes e vassouras limpando os túmulos para os visitantes do dia seguinte. A maioria só vai ao cemitério nesta data. Também vou pouco, infelizmente, mas evito esse dia de finados. Parece-me menos um dia de visitar quem morreu do que de importunar os mortos. De que outra forma entender os palcos construídos em torno de alguns cemitérios para essas showmissas que viraram moda?
Preferi visitar meus mortos de outra forma. Saí andando por um dos caminhos da minha infância. Todos temos nossas rotas de peregrinação pessoal. A última vez que fiz isso foi há mais de cinco anos. Para ser preciso: um dia antes da morte do meu pai, já desenganado. Estávamos todos apenas esperando as horas dele se consumarem e fui ao cinema tentar me distrair. Não lembro se funcionou, acho que não. Na saída, sem nem pensar, saí caminhando em direção à casa onde vivi quando criança.
Deus faz novas todas as coisas mesmo. Nele, tudo é acontecer sem acabar
Até costumo passar por ali com frequência, mas apenas de carro, e brevemente, com uma rápida olhada, lembrando algumas poucas coisas e logo seguindo em frente, deixando o passado para trás. Como a maioria costuma fazer quando vai ao cemitério. Já reparou como ficamos pouco tempo por lá, evitando ficarmos vulneráveis e no fim das contas apenas cumprindo uma obrigação que se tornou mais um hábito social do que outra coisa?
Enquanto caminhava, tanto naquela véspera da morte como neste último dia de finados, quanta coisa não resgatava da minha história, da história dos meus irmãos, pais, avós. Nada que eu tivesse esquecido, mas recordar é adentrar mais fundo no coração e de lá voltar com a vida restaurada. Com a morte tão próxima eu não conseguia perceber isso, muito menos sentir. Tudo doía, eu era todo pranto escondido atrás dos óculos de sol. Mas desta última vez não teve dor, teve sorrisos.
No que dobrei a esquina que dava para a “minha” rua fiquei emocionado. Ver a casa daquela perspectiva só tinha acontecido quando criança e naquele dia do cinema. Deixei-me ficar ali parado alguns minutos, com as lembranças todas transbordando. Mas não sentia saudades, não fiquei nostálgico, pelo contrário, fiquei feliz. “Não chore porque acabou, sorria porque aconteceu”, disse Gabriel Garcia Marquez. E é isso, apenas isso.
Decidi fazer outro trecho desse caminho que na véspera da morte do meu pai eu não fiz. Há duas, três quadras da casa, tem a igreja em que fiz a confissão preparatória para minha primeira comunhão e onde casei. Fui até lá menos para rezar e agradecer, embora também para isso, e mais para retornar de lá para a casa onde minha família de origem aconteceu.
Porque tem uma lembrança em particular que guardo com carinho maior. De um domingo, semanas depois daquela primeira comunhão. Fomos à missa somente eu e meus pais. Era raro eu ter um momento “filho único” com eles. E o que me recordo é da paz de espírito, da serenidade, diria até plenitude, com que voltei para casa caminhando por aquela mesma calçada que ainda não foi modificada, andando entre meus pais, acho que de mãos dadas até. Ao menos na memória estou assim, inclusive vestido com a roupa da primeira comunhão, todo de branco, o que provavelmente não estava naquele dia. Mas sei por que associei uma coisa com outra. Porque foi naquele dia que, de fato, eu tive minha primeira comunhão.
Retornei deixando essa recordação me guiar, olhando para baixo, para a calçada que ainda segue acontecendo, refazendo meus passos, agora aparentemente sozinho, se eu olhar com a visão do que acabou, mas até mais acompanhado do que aos meus 10 anos, instalado com o olhar do que nunca mais desacontecerá. Minha mãe, graças a Deus viva, estava ali. Meu pai, graças a Deus acontecido, também. Mas não só eles. Também meu compadre que se foi neste ano estava ali, eu sei que estava.
Semanas depois de sua morte foi a primeira comunhão de sua filha única. Não preciso dizer do quanto eu lembrei a minha, daquele dia, daquela calçada, durante a cerimônia. Ainda não dava para sorrir porque estávamos perto demais do que havia acabado. Ainda estamos. Lembrei que na hora da comunhão dela eu fiquei tenso, queria ver o exato momento e como estava distante temia confundi-la com outras meninas na fila. Mas consegui acompanhar, rezando para que lhe acontecesse o que me aconteceu no dia da minha primeira comunhão verdadeira. Não tenho como saber se sim, talvez nem ela. Não ainda, pelo menos. Mas se não foi ali, foi ou será em alguma outra. Sei disso hoje porque seu pai sorria ao meu lado na recordação que já se transformara em novo acontecimento.
Deus faz novas todas as coisas mesmo. Nele, tudo é acontecer sem acabar. Mas para nós, ainda não. Temos de lidar com o que acabou, cada um com seus acabados, cada um do seu jeito. O meu é assim. Por isso escrevo e antes de pôr um ponto final miro mais uma vez por sobre os túmulos do cemitério em frente a esta janela, deste lugar banhado em oração que nunca comunguei. É impossível não sorrir agora. Enfim, aconteceu.
Que Deus seja louvado.
Amém.
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