Janela do meu quarto da infância, do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (e, se soubessem quem é, quantos conheceriam Tabacaria?), davas para o mistério de um abacateiro. Ou seria uma goiabeira? Em minha memória jaz um abacateiro, mas na de minha família, mãe e irmãos, nem árvore havia. Um irmão até arriscou falar em goiabeira, mas acho que está a confundir com a árvore da casa de praia. Se meu pai fosse vivo talvez tivesse a resposta. Só tenho, portanto, a certeza da existência de uma árvore pequena, formada quase que apenas com o valente tronco solitário colado ao muro do quintal. Se tivesse dado frutos, talvez lembrássemos mais e melhor. Mas, se frutos houve, foram ignorados, logo, desperdiçados. De tudo, restou a memória de sua existência, como coisa real por dentro e a sensação de sonho dos que duvidam, como coisa real por fora.
Durante boa parte de minha vida, a cultura foi para mim como este abacateiro. Sabia que existia, mas sem saber o que era de verdade. A diferença é que daquela árvore nunca comi eventuais frutos, enquanto que os da cultura consumia desde sempre: filmes, músicas, livros, arte, enfim, tudo o que nos finalmentes chamamos de cultura. Mas era como se nunca tivesse consumido, como se a cultura fosse, no fim das contas, inútil ou desperdiçada. Era eu quem “comia errado” ou o que parecia ser cultura, na realidade, não era? Como vê, no fim das contas a cultura para mim era mesmo como aquele abacateiro. Se tivesse dado frutos, este escrito não seria como está sendo. Mas, se frutos houve, foram tão pobres como este símbolo tentado de quem não tinha mais metafísica no mundo senão abacates.
Tornamo-nos, ao mesmo tempo, raquíticos e obesos culturais, famintos e bem fornidos, de péssima saúde no fim das contas
Quando a incultura cobrou sua conta, só uma coisa serviu de remédio para mim: transformá-la em adubo para uma cultura verdadeira. Entre adubar e dar frutos, foram muitos anos. E assim sigo, colhendo e plantando, como neste escrito. Se existe outra forma de começar a consertar incultura, desconheço; comigo, pelo menos, foi assim: em tudo que lia, escutava, assistia, procurava eu mesmo. Só quando me encontrava em alguma obra cultural ela ganhava valor para mim. Como quando li pela primeira vez Tabacaria, de Fernando Pessoa: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” Era eu, que não era nada, não poderia querer ser nada e, à parte isso, tinha em mim todos os sonhos do mundo.
Demorou a me cair a ficha que a cultura forma a personalidade. Incultura, portanto, não é ausência de cultura, mas falta de cultivo. É uma forma de ser não sendo. Qual a consequência disso? Uma vida sem sentido, propósito, sem consciência de si e compreensão mínima da realidade em torno. Uma vida, na realidade, vazia, mas preenchida facilmente com distrações, entretenimentos de toda sorte, que até alimentam, mas apenas enquanto duram, e duram muito pouco.
Por isso, a circunstância atual da incultura brasileira, humana em geral, é paradoxal. Por um lado, nunca consumimos tantos “alimentos culturais”. Tudo está à mão. Músicas, filmes, obras de arte, basta acessar a internet e a cultura inteira está ali, a dois cliques de distância. Talvez nunca antes na história tantos estejam assistindo, escutando, lendo e escrevendo tantas coisas como hoje em dia. Por outro lado, talvez também como nunca antes na história tão poucos cultivem o que consomem. Tornamo-nos, ao mesmo tempo, raquíticos e obesos culturais, famintos e bem fornidos, de péssima saúde no fim das contas.
Como é impossível ser gordo e magro ao mesmo tempo, eis o que somos como personalidades: gordas possibilidades imaginadas, mas raquíticas realidades. Somos o da mansarda, que a tudo miramos das janelas abertas de nossos computadores e celulares, tendo sonhado mais que o que Napoleão fez, apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu, sendo sempre só o que tinha qualidades, mas ficamos esperando que nos abram a porta ao pé de uma parede sem porta. Por isso, cultive Tabacaria, leitor; cultive Tabacaria! Olha que não há mais metafísica no mundo senão Tabacaria:
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(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
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