Em tempos de Flip e Litercultura, lembrei-me do “Navegar é Preciso”, evento literário anual realizado pela Livraria da Vila e Auroraeco Viagens, diferente de todas as feiras ou festivais literários existentes no país. Ele acontece dentro de um barco navegando pelo Rio Negro, na Amazônia, onde todos convivem por cinco dias. Fui à edição deste ano a convite da agência de viagens NomadRoots, mediando um grupo especial de leitura formado exclusivamente para o evento, que ocorreu entre 1.º e 5 de maio.
Antes da viagem, estudamos sobre a Amazônia e os autores convidados: Lira Neto, J.P. Cuenca, Marcia Tiburi, Monja Coen, Matthew Shirts, Mário Prata e Chico César. Isso tornou a experiência mais rica e o que segue são algumas anotações de meu diário dessa viagem.
Uma viagem literária ou terapêutica?
Começo pelo fim. No último passeio tive oportunidade de ir no mesmo bote do dono da Livraria da Vila, Samuel Seibel, mais seu filho e neta de poucos meses de vida. Enquanto deslizávamos pelas águas negras tentando reter na memória a paisagem impressionante da floresta, comentei o quanto estava impressionado com o evento, com o quanto transcendeu a literatura, com todos os autores não apenas contando suas histórias de vida, mas sentindo-se tão à vontade que se abriram muito mais do que se esperava.
Disse-me que em todos os anos (esta foi a sétima edição) aconteceu o mesmo, lembrando de Amyr Klink, que, embora seja um sujeito mais fechado, ali se abriu de um jeito único, caindo em prantos com sua própria história e fazendo todos chorarem junto. Acredita que, por ficarmos sem acesso a internet e celulares, com todos no mesmo lugar, convivendo, isso faz com que o evento se torne diferente, por vezes uma “terapia coletiva”.
É isso que torna a experiência única, por mais que se participe novamente do evento.
Lira Neto, o pai de família
O primeiro a abrir seu coração foi Lira Neto. Contou sua história e constatei pela enésima vez a repetição do padrão brasileiro: os pais querendo que o filho tenha um diploma de curso superior ainda que seja claro que não precise disso, ou nem queira.
Lira, como tantos outros, bateu cabeça em alguns cursos universitários até descobrir que queria ser jornalista. E é como jornalista que escreve seus livros, quase todos biografias, sendo a mais famosa a de Getúlio Vargas, em três volumes, considerada definitiva. Revelou que em todos os seus livros está tentando responder a uma pergunta: por que somos um povo sem memória?
Fiquei feliz com sua seriedade, não é desses que tentam impressionar com performances retóricas, mas se sustenta no próprio trabalho. No dia a dia do barco pude testemunhar ser um sujeito simpático e disponível, desfeito de estrelismo. Estava no evento com a mulher e duas filhas, uma delas fazendo aniversário.
Fizemos alguns passeios no mesmo grupo. Num desses, uma caminhada de sobrevivência pela floresta, nosso guia nos demonstrou como fazer um arco e flecha, deixando que alguns testassem a arma. A caçula de Lira não teve dúvida e não só atirou como antes se embrenhou na floresta acompanhando o guia na busca por material. Tudo sob o olhar vigilante e amoroso do pai.
O carisma-de-protesto de Chico César
Chico César é um sujeito divertido, bom contador de histórias. Tem no irmão mais velho, GG, um ídolo. GG é um dos líderes do MTST de São Paulo, ele fez questão de dizer. O próprio cantor é militante bastante ativo da esquerda. Quando chegamos a Manaus, ele se sentou umas duas filas atrás de mim no ônibus que fez nosso traslado do aeroporto ao barco. Ao passar pelo estádio da Copa, a Arena Amazônia, o guia comentou algo sobre a corrupção, nem sei o quê. Foi o que bastou para o cantor gritar “Fora Temer”. Eu ri.
Na sua vez de contar a história, surpreendi-me ao descobrir que quando criança ele vivia andando de batina por todo lado. Sua mãe, muito religiosa, fez uma promessa de que, se ele se curasse de uma doença que teve ao nascer, dedicaria o filho a São Francisco de Assis. Foi curado, daí seu nome. Mas não sei se ainda é católico, ou eu não o escutei falando sobre isso. Talvez seja; afinal, se deturpam tanto o Marx, imagine São Francisco de Assis.
Na última noite da viagem fez um pocket show. Eu, que só conhecia a insuportável Mama África, fiquei contente em descobrir que ele tem outras músicas melhorzinhas. Pena que no meio do show quebrou o ritmo e o clima, insistindo em cantar sua canção de protesto contra o agronegócio, que dura uns 15 minutos e cuja letra diz: “Vocês não matam nem a fome que há na Terra / Nem alimentam tanto a gente como alegam / É o pequeno produtor que nos provê”. Eu ri.
A monja rock’n roll
Monja Coen é a que tem a história de vida mais rocambolesca dos convidados. Casou aos 14 anos com um piloto de corrida, foi mãe aos 17. Em 1973, aos 26, foi presa na Suécia por traficar LSD. É prima dos mutantes Sérgio Dias e Arnaldo Batista. Uma vida “sexo, drogas e rock’n roll” que só chama a atenção, na verdade, porque ela se tornou monja depois de viver tudo isso e mais um pouco.
Aos 70 anos ela continua tão intensa quanto jovem. Meditava todos os dias bem cedo, participou de todos os passeios, nadou com botos, caminhou pela floresta, dançou La Bamba com Lira Neto na noite em que a banda dos guias animou o deck do barco, sorria sempre e encantou Marcia Tiburi a ponto de esta querer levá-la para morar junto – o que é um milagre para quem conhece Marcia Tiburi.
Quem a entrevistou, aliás, foi a filósofa marxista que não deve ter gostado quando a monja disse que não é pela política nem pela economia que podemos mudar o mundo, mas pela vida interior.
J.P. Cuenca, o Garoto-Depressão
Antes da viagem fiz questão que meu grupo lesse o último romance de J.P. Cuenca, Descobri que Estava Morto. A razão era óbvia e boa demais. O livro é autobiográfico, trata de uma situação real vivida pelo escritor e teríamos a oportunidade rara de conhecermos pessoalmente o autor e personagem de um livro. Pena ele parecer morto ainda.
Cuenca é um típico depressivo. Seu romance, se é que se pode chamar assim, não é mais do que narrativa solipsista em busca de uma catarse real. Se conseguiu ou não se curar com seu escrito, não sei dizer. Espero que não, porque se o Cuenca redivivo é aquele, nem quero saber como era antes. Não fosse pelo bom humor de Mário Prata a entrevistá-lo, perigava ter gente se atirando no rio. Ou, mais provável, dormindo na cadeira.
Cuenca é carioca, mas odeia o Rio, mais especificamente a alegria do Rio. Prefere o cinza de São Paulo, para onde se mudou. Pouco o vi interagindo com as pessoas, sempre permanecendo mais afastado, com sua companheira ou um pequeno grupo.
Marcia Tiburi por Marcia Tiburi
“Não sigo conselhos e não aceito quando falam sobre minha vida.”
“Faço só o que eu quero.”
“Sou pessimista, nunca espero nada da vida.”
“Só gosto de usar roupa preta.”
“Tenho uma frustração muito grande com quem me conhece só por imagem, tevê, mas não leu meus livros.”
“Quem não lê deveria se sentir culpado.”
“Sofro muito preconceito.”
“Não tenho essa coisa de ser mãe. Acho um saco a coisa doméstica, um saco a maternidade, mas adoro minha filha, a relação com ela.” (a filha estava na viagem, sentada à frente da mãe enquanto ela discursava)
“Acho horrível aquelas mulheres que precisam ficar cuidando dos pais.”
“Sou muito narcisista.”
“Acho viver ultrachato.”
“Sou ariana com ascendente em sagitário, por isso sou insuportável.”
O mais brasileiro de todos: Matthew Shirts
O evento terminou com Matthew Shirts, chamado às pressas por causa de uma cirurgia de Beatriz Bracher. Nascido americano numa família mórmon, Matthew veio ao Brasil quando adolescente, morando na casa de uma família mato-grossense. E se apaixonou pelo país, mais do que todos nós: “O Brasil para mim é um eterno fascínio”.
Ele queria ser hippie, mas quando entrou na USP era a época dos punks, daí optou por abraçar o intelectualismo. Logo, era visto como agente da CIA. Eu ri, ele também. Quando era casado chegou a voltar a morar nos EUA, mas depois de um ano sua esposa disse que ele precisava voltar para cá porque estava ficando um J.P. Cuenca americano. Voltou correndo.
“Uma das coisas que gosto muito é que o brasileiro é alegre”. Alegre é você, Matthew.
O ocaso de Mário Prata
Mário Prata participou da viagem em 2016, mas descolou um lugar nesta como jornalista convidado. Ele queria escrever uma matéria sobre o vício com os celulares e a internet. Conversou com muita gente, gravou vários depoimentos e iria escrever para a Folha de S.Paulo, se não me engano. Até onde eu sei a matéria ainda não saiu.
Mário dispensa apresentações. Autor de novelas famosas como Estúpido Cupido e Um Sonho a Mais, tem inúmeros livros publicados, milhares de crônicas, foi um dos integrantes do Pasquim e é um arquivo vivo da cultura brasileira dos últimos 50 anos.
A primeira conversa que tivemos foi logo depois do primeiro passeio. Eu estava sentado com outros viajantes, conversando enquanto tomávamos um drink antes da fala de Lira Neto. Mário passou, olhou candidamente para nossos copos e questionou a hora em que tínhamos começado a beber, acho que perto das 11 horas. Sentou-se conosco, mas não bebeu. Não bebe mais, não pode mais.
No mesmo dia, no fim da noite, voltei a conversar com ele, agora acompanhado também de Matthew Shirts. Mário não foi entrevistado, mas ali foi como se tivesse sido. Contou um pouco de toda a sua vida, os tempos de Pasquim, sua vida atual morando em Florianópolis. Foi aí que uma nuvem de tristeza nublou seu olhar. A idade está lhe deixando com medo de morar sozinho: “Vai que acontece alguma coisa?” Seu filho, Antônio Prata, o chamou para viver no Uruguai com ele, mas Mário estava reticente, parecia preferir São Paulo.
Não muito depois ele se despediu e foi dormir, deixando-me com sua tristeza e meu copo de whisky. No último dia, terminamos a viagem conhecendo o famoso Teatro Amazonas, onde fomos brindados com uma apresentação breve de uma orquestra. Depois de conhecer tudo, avistei Mário encostado numa pilastra, sozinho, semblante triste. Dispus-me a lhe dar meu depoimento sobre ter ficado sem celular e ele o tomou.
Despediu-se e acompanhei com o olhar seu andar cansado, desconfiando nunca mais terei oportunidade de conversar com ele, o que me fez recordar uma passagem sua: “Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue”. É como me sinto agora.
Uma viagem literária e terapêutica
Termino com o começo. Eu que sou piá de prédio e nunca tive qualquer curiosidade por conhecer a Amazônia, muito menos fazer um cruzeiro, voltei de lá querendo retornar. Dizem que a literatura imita a vida, mas é mais do que isso. Ela nos ensina a compreender o próximo por nos colocar a viver na alma de um outro. “Navegar é Preciso” é mais do que um evento literário, é a própria literatura acontecendo ao vivo. Não existe terapia melhor.