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Francisco Escorsim

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Filme

“Nefarious”, a “Barbie da direita”

Cena do filme "Nefarious". (Foto: Divulgação)

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Não, não assisti ao filme da Barbie (ainda, acho), mas a comparação com Nefarious não é pelas obras, e sim pela forma com que foram e estão sendo recebidas pelos condomínios de bolhas que chamamos de “direita” e “esquerda”, que vão entre aspas porque servem para quase nada além de facilitar a comunicação sem necessidade de maiores distinções.

Barbie já era considerado um filme “de esquerda” antes mesmo de ser lançado. Para a turma canhota, portanto, o filme era bom sem nem precisar assisti-lo e, se houve alguns decepcionados depois de vê-lo, não foi porque seria um filme ruim, mas justamente por não atendê-los o suficiente no seu viés esperado.

Com Nefarious, que nem sequer foi lançado no Brasil, tem acontecido algo parecido, mas agora para a turma destra, que tem se demonstrado encantada, não tanto pela obra, mas pelo fato de verem boa parte do ideário “de esquerda” sendo demonizado – literalmente – no filme. Curioso, como o gato que morreu, fui atrás e no que segue virão spoilers; então, já sabe.

Não há contraponto, no filme, ao ponto de vista do demônio. Qual o problema disso? Ora, se só o demônio fala sobre si, dele é toda a autoridade e credibilidade no filme

O filme é quase que somente um diálogo entre um psiquiatra ateu e um condenado à pena de morte, Edward, que se diz possuído por um demônio, Nefarious. O papel do psiquiatra, em poucas horas de conversa, é determinar se o sujeito está louco (e, com isso, não poderia ser morto) ou não (e, assim, a pena de morte poderia ser aplicada).

A forma do filme é, portanto, mais teatral do que cinematográfica, dependendo quase que inteiramente da interpretação dos atores, que não são lá grande coisa. Há quem os tenha achado excelentes, mas aí seria preciso inventar novos adjetivos, significando algo melhor, para as atuações de Tommy Lee Jones e Samuel L. Jackson em The Sunset Limited (disponível na HBO Max, e recomendo muito), cuja forma também é estruturada em diálogos num mesmo cenário. Comparados, Nefarious se torna, no máximo, medíocre (no sentido de mediano, não como xingamento).

Edward/Nefarious não querem convencer o psiquiatra de uma possível loucura; pelo contrário, querem convencê-lo de que está diante de alguém possuído pelo demônio. Mais ainda, o demônio quer que um livro que já escreveu e que seria um “Evangelho da Sombra” seja publicado pelo médico. Ou seja, o filme é sobre o demônio querendo provar que existe versus o ceticismo sobre sua existência, não só do psiquiatra como do padre que aparece brevemente a certa altura.

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Alguns padres exorcistas têm dito que o filme é o melhor retrato cinematográfico de uma possessão demoníaca. Mas, como obra de arte e não uma ilustração a título de exemplo, temos um problema. E não é dos pequenos: não há contraponto, no filme, ao ponto de vista do demônio. Qual o problema disso? Ora, se só o demônio fala sobre si, dele é toda a autoridade e credibilidade no filme. Desde quando aceitar o pai da mentira como “professor” significa coisa boa? E tanto faz se seu discurso é “bom” ou “correto”; afinal, Jesus Cristo foi tentado pelo djanho usando as Sagradas Escrituras, é bom lembrar. Não se dá ouvidos ao demônio. Creio que nenhum exorcista discordaria disso.

A consequência disso no psiquiatra fica evidente: ele faz a vontade do demônio, ainda que não do modo como Nefarious aparentemente desejava, publicando o livro como um espécie de alerta da existência do demônio. Mas o demônio é um mestre da manipulação; será que seu objetivo não seria outro? Por que desejaria ser reconhecido, provar que existe? O mais famoso dos exorcistas, o padre Gabrielle Amorth, autor de inúmeros livros a respeito, dizia que nada faz o demônio mais feliz do que quando os seres humanos zombam duvidando de sua existência. Acho que tem caroço nesse angu...

Além disso, um dos momentos mais importantes do ritual de exorcismo é quando o padre consegue forçar o demônio a revelar seu nome, o que lhe confere poder sobre o djanho. Mas em Nefarious o demônio já entrega seu nome logo de cara, inclusive o quer no título do livro que pretende seja publicado, e o filme é praticamente uma palestra sobre como atua, explicando tintim por tintim como possui as almas etc. Não é (muito) estranho um demônio tão “verdadeiro”, tão “honesto”?

Desde quando aceitar o pai da mentira como “professor” significa coisa boa? E tanto faz se seu discurso é “bom” ou “correto”; afinal, Jesus Cristo foi tentado pelo djanho usando as Sagradas Escrituras, é bom lembrar. Não se dá ouvidos ao demônio

Pensemos um pouco mais. No filme, o demônio diz que a turma “de esquerda” já é sua, faz sua vontade etc. Então, tornar-se conhecido para essa turma seria arriscado, poderia ter o efeito inverso. Com o jogo ganho, para que arriscar gol contra, despertando as pessoas do mal em que vivem crentes de ser o bem? É isso o que o psiquiatra, no fim das contas, parece querer com seu livro, alertar, despertar as pessoas para essa realidade, da qual ele mesmo se deu conta pela revelação do demônio a partir da certeza da sua existência comprovada.

Além disso, dizer a “verdade” também jogaria contra a batalha do demônio com quem não foi ainda conquistado, ou seja, daqueles que discordam e combatem o ideário “de esquerda”, confirmando o acerto do “lado” em que estão nessa guerra. E sendo o demônio também o pai da discórdia, da divisão, não parece fazer mais sentido que atue aprofundando a tal da polarização em que vivemos hoje em dia, tornando cada vez mais difícil uma solução que não seja violenta? Não poderia ser esse o objetivo com o livro sendo publicado como foi, cujo conteúdo, no fim das contas, é o filme a que assistimos?

Sendo “de direita” e tendo assistido ao filme, você não saiu mais convicto da sua bondade, do quão certo está no que defende, no quanto os “de esquerda” seriam demônios que devem ser combatidos como se fossem o próprio pecado, não “apenas” como pecadores?

Reparou que no filme não sabemos nada sobre Edward, absolutamente nada da sua vida, salvo um pouco sobre seus crimes, mas não quem ele foi? É apenas um recipiente do demônio, mais nada, tão descartável para a história quanto para Nefarious. É mais fácil até acharmos merecido o que lhe aconteceu – afinal, se o demônio o possuiu, é porque Edward o permitiu em algum momento, da mesma forma como o psiquiatra aceitou que Nefarious entrasse nele – do que termos compaixão, misericórdia. E aí...

Pergunte-se: sendo “de direita”, qualquer delas, e tendo assistido ao filme, não saiu mais convicto da sua bondade, do quão certo está no que defende, no quanto os “de esquerda” seriam demônios que devem ser combatidos como se fossem o próprio pecado, não “apenas” como pecadores? E aí... Que atire a primeira pedra quem não tem pecado.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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