Amigos, não acreditem, pelo amor de Deus, que a santidade influi no futebol. Influi pouquíssimo ou nada. Nunca me esqueço de um vizinho que tive na minha infância profunda. Era um santo da cabeça aos sapatos ou, melhor dizendo, da cabeça às sandálias. Do berço ao túmulo, não praticou uma má ação. Era todo amor, todo bondade. E só me admira que não andasse com um passarinho em cada ombro.
Pois bem: um dia, casou-se. Para usar uma velha imagem minha, direi que entrou por um cano deslumbrante. Já os conhecidos diziam-lhe: “Cuidado, que um dia tua mulher te dá bola de cachorro”. E, certa vez, na presença de visitas, ela o destratou de alto a baixo: “Eu queria um marido, não um santo”. E ainda completou: “Tenho nojo de tua bondade”. Em outra ocasião, a víbora explodiu: “Arranja um defeito. Ou arranjas um defeito ou me desquite”. Não foi possível. A perfeição do infeliz aumentava de 15 em 15 minutos.
Até que se separaram. E, quando um inocente do Leblon perguntou à víbora se ele a maltratava, ela urrou: “Aquela besta é um santo!” Por aí se vê, a virtude exagerada, em vez de favorecer o amor, pode liquidá-lo. Estou farto de ver sujeitos que são amados pelos seus defeitos.
Até os esquimós sabem que, na Arena, os jogadores bebem o sangue do adversário como se groselha fosse
Por exemplo: no meu Club Athletico Paranaense. Tenho-lhe um amor de devoto. Quebrei minhas lanças para defender a troca do nome do estádio, de Joaquim Américo para Mário Celso Petraglia. Ao ter a notícia, berrei: “É o nome ideal!” Um amigo meu, bem-pensante insuportável, veio me perguntar: “Você não acha que vai dar azar mudar no ano do centenário?” Respondi: “Talvez. Mas afirmo que tem os defeitos necessários para vencermos o Sobrenatural de Almeida”. E, realmente, o nada querido Petraglia possui defeitos luminosíssimos.
Por exemplo: um furioso. Não acendam um fósforo perto dele que o Mário explode. E aí está o primeiro e maravilhoso defeito: futebol é uma selva de gângsteres. Dirão que é exagero. Exagero, uma ova. Perdão. Exagero, vírgula. Tudo é possível na CBF, menos uma boa ação. Portanto, se o Mário é um Tartarin ou, melhor dizendo, se cospe mais fogo do que o dragão de São Jorge, melhor para o Athletico. O Mário não precisa entender de bola. Antes de mais nada, precisa ser um guerreiro.
Outro defeito: ele fará qualquer negócio para o Athetico ser campeão do mundo e voltar com o caneco de ouro. Dirão vocês: “Mas é feio!” Ora, ora. Desde quando o bonito ganhou o Mundial? De mais a mais, só os subdesenvolvidos têm escrúpulos. O inglês é um grande povo. Na guerra, salvou o mundo com a sua resistência. Mas em 66 a Inglaterra foi de um descaro empolgante. Manipulou juízes, baixou o pau, fez horrores e ganhou. Portanto, com suas qualidades, o inglês salvou o mundo; com os seus defeitos, ganhou a taça.
Mais outro defeito do Mário: o demoníaco e, ao mesmo tempo, santo marketing. Acusam-no de ter feito um pacto com o diabo para termos as conquistas que temos. Hoje, até os esquimós sabem que, na Arena, os jogadores bebem o sangue do adversário como se groselha fosse. Ora, o que o Athletico está fazendo, de jogo em jogo, com essa campanha marqueteira do pacto com a torcida usando imagens infernais é um terrorismo bárbaro. Está coagindo os torcedores, e todos os concorrentes. Se há uma expulsão de jogador adversário aos 3 segundos de jogo, ninguém tem dúvidas: “É o pacto! É o pacto!!” Já os juízes estão acuados de apitar por aqui. Não queiram saber o que o Athletico não fará se jogar um Mundial.
Está feita a advertência universal: “Nem o diabo ganha aqui no Caldeirão”. E os adversários, até os latagões, com uma saúde de vaca premiada, já tremem jogar na Baixada e começam a sentir um prévio e insuportável sentimento de culpa. Até Joaquim Américo, nosso Sobrenatural de Almeida curitibano, deu um tempo em sua vingança, aceitando selar o pacto de paz interna e de fazer da sua casa um inferno para os outros. Creiam que, com os defeitos de Mário Celso Petraglia, não cairemos.
* baseado na crônica de Nelson Rodrigues publicada no jornal O Globo de 5 de novembro de 1969 e contida na coletânea A Pátria de Chuteiras. O defeituoso, na crônica, era João Saldanha, que acabou não permanecendo como técnico da seleção que nos traria o tricampeonato mundial no ano seguinte. Ainda assim, sem os defeitos dele, não teríamos tido aquela que foi a Seleção das Seleções.
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