A história da nossa República, que foi parida com um golpe militar, é a de uma ditadura com aparentes intervalos democráticos. Não vou tornar a coluna imensa citando esses golpes, períodos autoritários etc; Google está aí para isso, caso deseje. Interessa-me hoje lembrar de um dos lapsos do autoritarismo, quando há soluços de maior ou menor liberdade, como aquele havido entre o fim da era Vargas em 1954 e o golpe militar de 1964.
Foi nesta trégua que surgiu a Bossa Nova, por volta de 1958/59, com músicas como Desafinado, Samba de uma Nota Só e Chega de Saudade, tendo se encerrado como “movimento musical” em 1966, pouco depois do retorno do regime autoritário, o que não é mera coincidência.
Não que os participantes tivessem sido censurados, perseguidos pelo novo governo. Nem teriam por que, afinal, talvez só a turma da Jovem Guarda fosse tão “alienada” politicamente quanto a da Bossa Nova, cujos temas, segundo a sua musa Nara Leão: “é sempre a mesma base: amor-flor-mar-amor-flor-mar, e assim se repete”. E cantados com muitos diminutivos, oferecendo tanto risco político quanto um passarinho topetinho-do-brasil-central.
Não, o que “matou” a Bossa Nova no país foi, mais do que o autoritarismo oficial, o estrangulamento cultural pela politização generalizada. Antes mesmo do golpe de 64, mais precisamente em 1962, Carlinhos Lyra, um dos expoentes da Bossa Nova, já seduzido pelas erínias ideológicas, profetizava: “A Bossa Nova estava destinada a viver pouco tempo. Era apenas uma forma musicalmente nova de repetir as mesmas coisas românticas e inconsequentes que vinham sendo ditas havia muito tempo. Não alterou o conteúdo das letras. O único caminho é o nacionalismo.” O “único caminho”...
Não, o que “matou” a Bossa Nova no país foi, mais do que o autoritarismo oficial, o estrangulamento cultural pela politização generalizada
O “único caminho” levou ao racha na turma da Bossa Nova em 1964. Geraldo Vandré, tentando convocar Roberto Menescal para seu lado (tanto faz qual seja), disse-lhe: “Temos de fazer música participante. Os militares estão prendendo, torturando. A música tem de servir para alertar o povo”. Ao que Menescal respondeu: “música não foi feita para alertar coisa nenhuma. Quem alerta é corneta de regimento”.
Não que Menescal fosse favorável à ditadura, ele simplesmente não se interessava por política, mal sabia o que se passava, conforme conta Ruy Castro em seu Chega de Saudade, livro que conta a história através das histórias da Bossa Nova. Assim como Menescal, vários outros artistas queriam apenas seguir compondo. Mas, quem não se engajava não era mais bem visto, mesmo os assumidamente “alienados”, como Ronaldo Bôscoli e Tom Jobim.
O problema aí não está na música poder servir a propósitos políticos. O problema é a música só ser aceita se servir a propósitos políticos. Que Vandré tocasse sua corneta de regimento, mas por que Menescal não poderia cantar sobre o barquinho que vai quando a tardinha cai?
Eis o sufocamento cultural que, somado ao político, “matou” a Bossa Nova no país no mesmo momento em que ela atingiu seu auge conquistando o mundo, com discos como os de João Gilberto e Stan Getz e os de Frank Sinatra com Tom Jobim. Como disse Ruy Castro: “A Bossa Nova, sentindo-se fora de casa, pegou seu banquinho e seu violão, e saiu de mansinho. Felizmente, tinha para onde ir: o mundo”.
De onde nunca mais saiu, diga-se, mantendo-se viva e influente até hoje (escute Billie Bossa Nova, de Billie Eilish, por exemplo). Quando a conhecemos mais de perto, contextualizando historicamente, testemunhando sua qualidade musical superior a quase tudo que a tal de MPB viria a criar depois, vemos que a Bossa Nova estava destinada a viver pouco tempo no Brasil porque aqui o que é bom dura pouco, isso quando não é desprezado. Daí porque Ruy Castro considere a curta hegemonia da Bossa Nova no cenário cultural brasileiro como um “grande feriado”. Simbólico, não?
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