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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

“Nós lemos para saber que não estamos sozinhos”

(Foto: Wikimedia Commons)

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Calma, não siga tão rápido para ler o texto. Fique um pouco mais diante da frase de C.S. Lewis que me serviu aqui de título. Para que lemos tanto? Sim, lemos muito. Ainda que os livros sejam poucos, de literatura menos ainda, vivemos na internet lendo o tempo todo, como agora você está fazendo. Muitas vezes nem pensamos no “para que” fazemos isso e, se formos obrigados a parar para pensar nisso, talvez bastem as respostas óbvias: para se informar, para passar o tempo, e por aí vai. Mas nós lemos para saber que não estamos sozinhos, para não ficarmos sozinhos como o rei Xariar.

Não conhece a história desse rei persa? Xariar tinha um irmão, Xazaman, a quem deu uma parte de seu reino para que governasse. Um dia, quando Xazaman se preparava para viajar em visita ao irmão, descobriu que sua esposa o traía com um escravo. Depois de matar ambos, seguiu ao palácio do irmão, sentindo-se o homem mais infeliz do mundo. O rei Xariar fez de tudo para alegrar seu irmão, mas sem sucesso. Até que um dia, tendo saído para caçar, Xazaman descobriu que a rainha, esposa do irmão, também o estava traindo. Que imagina que Xazaman fez?

Isso, sentiu-se aliviado! “Já que é assim, por que me atormentar lembrando o tempo todo uma infelicidade que é tão comum?”, disse ele. De repente, Xazaman não estava mais sozinho no mundo e tinha um irmão até mais infeliz. Quando Xariar voltou, alegrou-se com a mudança de humor do irmão e quis saber da causa, ao que Xazaman respondeu: “Você é meu sultão e meu senhor, mas, eu suplico, não exija que eu responda a essa pergunta!” No fim das contas, acabou contando. Adivinha o que aconteceu?

Para que a literatura possa educar ela precisa, antes e concomitantemente, entreter

Isso, Xariar se sentiu o homem mais infeliz do mundo e decidiu que jamais iria confiar novamente em outra mulher, embora não pudesse viver sem alguma. Assim, decidiu que voltaria a se casar, mas na manhã seguinte à noite de núpcias mandaria matar a esposa. E aí se casaria novamente para em seguida matar a nova mulher. Assim foi feito, durante três anos. Por óbvio, seu reino foi se desmantelando, com vários fugindo para não verem suas filhas assassinadas. Até que um dia Xerazade, a filha do seu vizir, decidiu que iria se casar com o rei para tentar salvar o reino.

Já se deu conta de que essa história é como começa As 1.001 Noites, não? A partir daqui vem a parte mais famosa, com Xerazade conseguindo escapar da morte todos os dias contando histórias que despertavam a curiosidade do rei, que o fazia desistir de matá-la para saber como a história terminaria no dia seguinte, ao que ela engatava outra história, e assim foi conseguindo não apenas adiar sua morte, mas curar o rei de sua solidão e, por consequência, restaurar seu reino. Sim, você leu certo: curar da solidão. Xariar, como seu irmão, sentia-se o homem mais infeliz do mundo pelo que lhe havia acontecido. Seu medo de sofrer novamente o condenou à solidão.

Xariar escutava aquelas histórias para não ficar sozinho, ainda que não tivesse consciência disso. E à medida que Xerazade ia alimentando o imaginário do marido com histórias de todo tipo, mas principalmente de histórias com personagens sofrendo mais e sendo mais infelizes que Xariar, acontecia com o rei o que acontecera ao seu irmão quando descobriu que Xariar também era corno: a tristeza foi dando lugar a um alívio, confundido com alegria, de que seu sofrimento era comungado com outros, que ele não era o único. A certa altura, Xerazade começou a contar uma nova história que era a do próprio rei. Ao ver sua vida sendo narrada como tantas outras fictícias, o rei se deu conta de seu erro e maldade, desistindo de matar Xerazade e com ela permanecendo casado, o que restaurou o reino em seguida.

Xerazade era, em certo sentido, a timeline de rede social da época e Xariar somos nós, que preenchia o tempo, sua solidão, entretendo-se com o que “lia” e não podia ficar sem conferir as “notificações” no smartphone no dia seguinte, depois de dormir. Mas Xerazade era também muito mais que isso: é um símbolo da literatura, algo que também entretém, distrai-nos da solidão, mas não fica apenas nisso. O propósito de Xerazade não era apenas distrair a solidão do marido, mas curá-lo dela. Ao entretê-lo, Xerazade também o educava. Educação da imaginação pela formação do seu imaginário. Talvez esta seja a grande lição de As 1.001 Noites: para que a literatura possa educar ela precisa, antes e concomitantemente, entreter.

Quando isso acontece de verdade, entendemos o que ensinou Mario Quintana: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. E também o que dizia Jorge Luis Borges – aliás, grande fã de As 1.001 Noites –, para quem a leitura era uma espécie de felicidade. Ainda que seja um livro que nos afete como um desastre, como disse Kafka, pois aí “um livro deve ser como um machado diante de um mar congelado em nós”. Xerazade foi esse machado para Xariar e, depois, sua felicidade. Aos leitores leitores, dedico essa coluna. Aos que são apenas leitores, deixo-vos o alerta de Marguerite Duras: “Caminhais em direção à solidão. Eu não, eu tenho os livros”.

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