“Foi um passo dramático para um solteirão inveterado... Por isso, inventei Bond como forma de terapia”, disse Ian Fleming, o criador do famoso espião, que se casou aos 44 anos, tendo escrito o primeiro romance sobre 007 um ano depois, concebido como um “atenuante para o choque de ter se casado tão tarde”.
Se você só conhece o James Bond do cinema, se espantará com sua origem literária, em Cassino Royale, de 1953. Todo o drama do autor com sua despedida da vida de bon vivant trocada pela de casado transparece no personagem, construído como um homem, no fundo, inseguro com mulheres: “Bond via a sorte como uma mulher, a quem um homem deveria conquistar ou seviciar, mas jamais comprar seu amor ou implorar por ele. Jamais sofrera por cartas ou por mulheres. Mas era realista o bastante para admitir que um dia ainda se ajoelharia diante do amor ou da sorte. Sabia que, quando isso acontecesse, seria marcado com o ponto de interrogação fatal que reconhecia em outros homens, a promessa de pagar antes de perder, a aceitação de que o fracasso era uma possibilidade”.
Se você só conhece o James Bond do cinema, se espantará com sua origem literária, em Cassino Royale, de 1953
O medo de intimidade levava à frieza de Bond: “Então, ao primeiro sinal de que poderiam encontrar prazer na companhia um do outro, um sinal que consistiria apenas nas primeiras palavras de uma frase convencional, Bond gelara e começara a evitar qualquer intimidade com ela, como se o calor lhe fosse mortal”. E, da frieza, à imaturidade de um menino que por não saber lidar com meninas as vê apenas como um atrapalho na vida: “Suspirou. Mulheres são para o lazer, pensou Bond. No trabalho, atrapalham tudo, complicando as coisas com sexo, sentimentos magoados e toda a bagagem emocional que carregam. Um homem precisa cuidar delas – e também tomar cuidado com elas”.
No romance, como na vida, uma hora o homem se ajoelha diante do amor. Bond se apaixonou por Vésper, a primeira bond girl, que, entretanto, quebraria seu coração, devolvendo-o à frieza: “O amor e a dor tinham sido relegados para os porões de sua mente. Talvez mais tarde esses sentimentos fossem resgatados, examinados com desapego, e mais uma vez guardados, junto com outros trastes sentimentais que mereciam o esquecimento”.
A adaptação cinematográfica de Cassino Royale só foi realizada em 2006, mais de 50 anos depois, servindo como reboot da série de filmes com a estreia de Daniel Craig no papel de James Bond. Assisti a todos recentemente. A maioria revi, mas alguns foi pela primeira vez, em especial esses da nova série com Craig. Considerando as cenas de ação, são incomparavelmente melhores, pela evolução dos efeitos especiais que fazem uma diferença brutal em filmes de ação, algo parecido com a diferença entre filmes mudos para falados, ou preto-e-branco para os coloridos. E não, não estou exagerando.
Também em termos dramáticos, o personagem nunca foi desenvolvido como tem sido nesta nova sequência, em que conhecemos sua história pessoal dando profundidade ao espião. Considerando como o personagem foi concebido por Fleming, é inegável que Craig é o que mais se aproximou do original literário, muito menos charmoso que os 007 icônicos de Sean Connery e Roger Moore, que, por sua vez, realizaram muito mais o propósito “terapêutico” de Fleming, sendo o personagem sua “válvula de escape” do casamento para viver na ficção a solteirice de antigamente.
Considerando como o personagem foi concebido por Fleming, é inegável que Daniel Craig é o que mais se aproximou do original literário
Assim, assistir aos filmes com Connery, Moore e também Pierce Brosnan é se divertir com o espião galã que parece mais também se divertir com o que vive, por pior que seja, do que outra coisa. Já com Craig, George Lazenby (que interpretou o personagem apenas em um filme, 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade) e Timothy Dalton acompanhamos um personagem mais sério, com mais história e que se rende ao amor, casando no filme estrelado por Lazenby e em seguida já sofrendo por isso, vendo a esposa ser assassinada. Dalton, em 007 – Marcado para a Morte e 007 – Permissão para Matar, deu ao personagem uma sisudez e peso moral incomum às suas ações, algo que Craig irá desenvolver mais e melhor, retomando o dilema original do personagem, com sua sequência de filmes levando-o a, no último, 007 contra Spectre, enfrentar nova escolha entre a vida de espião solitário bon vivant e a de casado por amor.
Era para o último filme com Craig, completando esta sequência de filmes, ter saído em 2020, mas o lockdown na Inglaterra levou o filme a ser adiado algumas vezes, estando previsto agora para sair em novembro deste ano, com um James Bond aposentado sendo forçado a voltar à ativa para uma última missão ao lado do novo 007, a espiã Nomi, interpretada por Lashana Lynch. Ao que parece, será a despedida do personagem dos cinemas, com a franquia 007 seguindo em frente com novos rumos. Se será bom ou ruim, os filmes dirão.
Assistir aos filmes com Connery, Moore e Brosnan é se divertir com o espião galã que parece mais também se divertir com o que vive. Com Craig, Lazenby e Dalton acompanhamos um personagem mais sério, com mais história
É até compreensível a mudança, dado o politicamente correto que impera ultimamente e que obviamente levará o personagem a ser cancelado em algum momento por seu “machismo” ou algo assim. Mas isso não faz o menor sentido, pois o personagem é aquilo que seu autor queria que fosse: “Quis apenas criar uma personalidade interessante, a quem aconteciam coisas extraordinárias, mas nunca pretendi transformá-lo em um exemplo ou em um monstro”. E interessante Bond é, assim como suas histórias que também servem como um bom espelho dos últimos 70 anos no mundo. E, se seu fim for mantido como no fim de 007 contra Spectre, sua despedida será muito digna, pois terá sido um adeus por amor, algo que apenas engrandece o personagem e nos deixa na memória um final feliz, daqueles típicos de comédia romântica, algo como: “e foram felizes para sempre”.
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