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I.
Depois da separação, passou a usar camisetas e jeans com o corte da moda, também tênis; tênis cinza e vermelho, daqueles sem cadarço. Começou uma dieta, voltou à academia, correndo no parque nos fins de semana. Fez bronzeamento artificial, comprou um carro esportivo importado, pintou os cabelos. Saía quase toda noite. Disfarçava não ouvir os comentários maldosos da molecada. Ficou com uma ou duas meninas muito mais jovens, precisou tomar remédios para dar conta. O filho descobriu porque uma delas era amiga da sua namorada.
II.
Liberou a casa para a festa da faculdade do filho. Deslocado, deixou-se ficar perto da churrasqueira, puxando conversa com o assador, ao lado do barril de chope. Não raro, servia os jovens. Avistou o violão jogado no chão. Estirou-se em uma das cadeiras de praia esparramadas no amplo salão e arranhou uma bossa qualquer. Aos poucos, alguns à volta; por vezes, até um coral. Até chamarem-no de tio.
A festa terminada, beliscando os restos na churrasqueira, um último copo de chope. Deixou para limpar tudo no dia seguinte. Subia a escada que dava aos quartos quando, no último degrau, algo o fez se voltar e mirar o salão. As brasas do carvão iluminavam a desordem sem vida, o violão sem dono brilhando no escuro. Só então se deu conta que o filho fora embora sem se despedir.
III.
No meio do verão já não corria no parque. Mantinha a academia e a dieta, mudou a cor dos cabelos. O carro passou pela primeira revisão. O bronzeado já não fazia sentido, as roupas nunca fizeram. Desistiu de comprar um loft. Lutava para não demonstrar cansaço, mas seu pescoço e mãos não mentiam, continuava aparentando 53. Vinha aí mais um aniversário, ninguém se lembraria, menos ainda o filho. Decidiu-se: outra viagem.
IV.
Mirava o nada através da janela da sala, esperando o café esfriar um pouco. Era um dia qualquer, tão igual quanto tantos outros da pandemia. Lembrou do começo de tudo, do quão enfurecido ficou pela viagem desmarcada, mas achando que dali a poucas semanas seria possível. Quanto tempo se passou desde então? Cortou o pensamento, percebendo a melancolia tomar conta pelo tanto de meses passados completamente sozinho.
Chovia, quase nenhum carro passava na rua. De repente, um apareceu, estacionou e viu dele sair o filho. A xícara quase caiu. Ele sabia. Abriu a porta antes de ele apertar a campainha. Chorava mais do que a chuva. A mãe morrera. Ela morreu. Abraçaram-se, sem nada dizer.
Ajudou nos preparativos do enterro, não sabia por quê. O outro, aquele, não se incomodou. O velório estava proibido pelos riscos de contaminação, mas passou a noite toda na casa dela, deles. Não chorava. Tentava apenas ficar próximo ao filho o tempo todo.
Bem ao amanhecer viu-se só com o corpo no caixão, na mesa da sala. Um filme passou à sua frente. Nada disse, nada pensou, nada rezou. Não, não perdoou, ao menos achava que não. Mas não sabia por que veio a lembrança daquele disquinho com as duas músicas que marcaram a primeira conquista conjunta: o apartamento comprado depois de casados com tanto esforço e sacrifício comum. Estava sem móveis, só a vitrola e as taças de vinho que levaram para acompanhar a pizza. Uma única lâmpada pendurada no teto iluminava os dois dançando, esquecidos do tempo, esquecidos de si, de tudo.
Foi como se escutasse. Não se conteve. O cheiro da morte, as lágrimas cantadas aos sussurros: “like a bridge over trouble water I will...”. Retirou o véu, dando um singelo beijo na testa. Foi quando o filho entrou. Despediu-se, surpreendido com um beijo inédito do rapaz. Voltou chorando ao volante, sem resistir.
V.
Meses depois, quando estava quase chegando a sua vez de se vacinar e voltar à vida normal, pensava nisso tomando o café olhando a rua pela janela, lembrando do dia em que o filho viera. Estava bem mais movimentada de carros agora. De repente, um deles parou. Desceu o filho. Desta vez, com malas na mão.
VI.
O carro esportivo agora era do filho. A dieta ficou menos rigorosa, mas manteve o pique na academia. Insistia com as roupas modernas, mas assumira os cabelos engrisalhados. Depois da pandemia, quem não ficou velho?
O último churrasco da faculdade só poderia ser lá. Ajudou nos preparativos, mas não ficou, tinha um encontro. Quando voltou, a festa ainda estava animada. Do alto da escada mirou o salão. Desceu, sem se fazer notar, pegou dois copos de chope e voltou, sentando-se no primeiro degrau ao lado dela. Apontou o filho, tocava o violão. Tinha esquecido que o havia ensinado.
Subiram para escutar música. Numa das trocas na vitrola, aquele disquinho surgiu no topo da pilha. Congelou por segundos, mas decidiu encarar. A namorada quase dormindo no sofá nada notou. Era namorada? Riu de si mesmo. O filho apareceu, meio bêbado, a festa acabou e ia deitar.
A namorada adormeceu de vez e ele a ajeitou no sofá. Sentou-se no chão e não trocou mais de vinil, fazendo repetir e repetir e repetir as duas músicas, lembrando das inúmeras vezes que fez o filho dormir escutando-as. Será que ele se lembra? Amanhã perguntará.
Antes de dormir voltou ao salão, cantarolando: “Just because of you, boy. Yeah, just because of you.” Não acendeu a luz, deixando que a brasa na churrasqueira iluminasse a vida deixada em forma de bagunça. Procurou pelo violão. Não encontrou, o filho tinha guardado.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos