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O ausente

Imagem: Reprodução (Foto: )

Recolheram-no, sem saber como. Depois de um prato de sopa e um copo de suco de limão azedo, levaram-no ao dormitório, subindo por uma imponente escadaria encurvada. Devia ser 22 horas, pois as luzes se apagaram e roncos imediatos ressoaram pelo amplo salão. Uma luz branca refletida na janela próxima à sua cama chamou a atenção pelo espelho involuntário formado, brilhando um rosto qualquer, o dele. Imediatamente se aproximou para abri-la, com força desmedida.

Respirou fundo um jorro de vento frio inundando o ambiente, conferindo com o canto do olho se alguém o notou. Nada, ninguém, como sempre. Satisfeito, empurrou a cama para debaixo da janela, deitando sobre o cobertor, ainda de sapatos. Mirando o longínquo teto vez ou outra iluminado por relâmpagos, tateou no bolso do sobretudo, mesmo sabendo que a aguardente fora confiscada. “Ao menos, deixaram os cigarros…” Mas ao abrir a caixinha vermelha nada encontrou, senão o amarrotado papel amarelado pelo tempo que lhe servia de forro. Por que ainda o guardava? Desviou o olhar, observando a chuva caindo, escondendo um céu distante demais.

Chovia naquele dia? Ou era ela trovejando de raiva? Passava Grêmio x Palmeiras na tevê, antes de ela desligá-la. Como pode disso se lembrar nitidamente, mas não recordar do mais importante? Ela sentou-se ao seu lado ou ficou de pé? Esforçava-se para falar com ternura, não? Disse que cansara, algo assim, que não podia mais viver daquele jeito. Justificava-se com a voz embargada? Não, ela não chorava. “Chorou?” E a cara estupefata do juiz, ouvindo-o confessar que concordava plenamente com a mulher? Juridicamente ausente, foi como o declarou, solenemente. Saiu nos jornais, rádio, televisão. Lembrou-se que a mulher ficara linda na tevê: “Às vezes, medidas extremas são a única alternativa. Eu o amo, jamais me separaria, tampouco ele é incapaz, embora ausente, completamente ausente. E a lei é clara: se alguém está ausente, deve ser declarado morto. Não faço isso por mim, mas por ele! É uma tentativa de fazê-lo se importar com algo, reagir. Eu quero perder essa ação, não me entendam mal!

Até ele se convenceu? Fato é que, de absurda, a medida se tornou simpática ao público. “Verdadeiro progresso da ciência jurídica”, disse um especialista em Direito de Família. Outro doutor em sabe-se lá o quê considerou a decisão revolucionária, um exemplo a ser seguido. Ninguém mais questionou nada. Silenciaram as insinuações de que ele não tinha filhos, nem pais e, por isso, uma vez declarado ausente, depois juridicamente morto, a herança seria dela, tudo e não era pouco. Por que, ainda assim, voltou para casa na saída da audiência? Por que se surpreendeu com a fechadura já trocada? Há anos não pensava em nada disso, nem sequer havia resquício de uma lembrança e agora, de repente, tudo retornava, como se nunca tivesse sido apagado. Por que não jogou fora esse papel? Decidiu reler. Acompanhou com o indicador a grafia do seu nome e, mais além, aquele “morto para todos os efeitos”. Abaixo, um carimbo dando fé da verdade.

Um relâmpago riscou a escuridão, iluminando brevemente o amplo ambiente e revelando no canto oposto uma pequena estante repleta de livros. Descalçou os sapatos para não incomodar, como se ela ainda dormisse ao seu lado, com seu sono leve despertado ao menor ruído, e lentamente caminhou em direção à estante, incerto de tudo. Uma grossa camada de pó recobria todos os livros, fazendo seu nariz coçar. Escolheu um ao acaso, abrindo ainda mais a esmo, embora começasse a desconfiar da sua involuntariedade. E leu: “Não há jogo nenhum – disse ele. Nasci assim, aos pedacinhos, do pó. Para me ver seria preciso um olho facetado, como o das moscas. E toda minha geração se parece comigo.” Uma esquisita emoção arrepiou sua nuca. O livro era pequeno, poucas páginas, cabia direitinho no bolso do sobretudo. Rapidamente voltou à cama, adormecendo repentinamente, um sono que será sem sonhos, até porque, se os tem, nunca consegue se lembrar.

A manhã nasceu em meio à chuva persistente. Constrangido – “por quê?” –, serviu-se de café com leite, agradecendo o pão com manteiga que lhe entregaram. Sentou-se na ponta de uma comprida mesa de madeira, praticamente vazia. Pela porta aberta diante do calçadão observou uma procissão de guarda-chuvas caminhando sempre na mesma direção. Um sino ribombou e, sem pensar, saiu equilibrando o copo plástico ainda pela metade. A missa já tinha começado. Ajoelhou-se nos fundos da igreja, entrelaçando os dedos das mãos com firmeza, neles apoiando a testa. “Senhor… Pai Nosso… santificado… não… Ave Maria… cheia de graça… Senhor o quê mesmo?…” Segundos de absoluto vazio mental, sem saber como prosseguir. É disso que ela o acusava, não era?

Apertou o bolso onde ficava a caixinha vermelha, mas agora só havia o livro. Onde a deixou? Angustiado, sentiu a primeira agulhada da sede. Desde que começou a beber do acordar ao desmaiar, tudo se confundia em uma espécie de sonho ao qual desejava voltar. Saiu procurando um bar, mas precisava pedir dinheiro antes. A chuva tinha parado e turistas se aglomeravam na praça ao lado da catedral. Aproximou-se cuidando para não espantar ninguém e esperou o guia terminar de contar que, com a reforma na praça, descobriram as primeiras calçadas de Curitiba. Decidiram não mais as soterrar, mas deixá-las em permanente exposição, construindo por cima um resistente piso de vidro que agora ele também observava, sem entender por quê. O guia prosseguiu, dizendo que historiadores e arqueólogos ainda pesquisavam para descobrir a que destinos elas levavam. Deixou-se ali ficar, sem perceber um velho que lhe disse: “Certo mesmo é que aqui é o marco zero da cidade, a origem de todos os caminhos”.

Aquele velho era pintor e carregava duas grandes malas com telas. Pediu-lhe ajuda para carregá-las até seu ponto na feirinha do Largo. Em troca, pagaria o almoço. Caminharam vagarosamente. O sol surgindo timidamente espalhava um brilho opaco pelo petit-pavê. “Pensando no que haveria por baixo?”, perguntou o velho, como que adivinhando, mas a resposta não passou de um dar de ombros. A feira já fervilhava de gente espremida entre barracas instaladas por todos os lados. Não precisava ter ficado, pois assim que chegaram o velho lhe deu o dinheiro. Mas, ao ajudá-lo a montar os cavaletes para expôr os quadros, o livro caiu do bolso do seu sobretudo. “Ah, Bernanos…”, disse o velho, surpreso, com o livro nas mãos. “É… eu ia devolver, juro… peguei emprestado e…”, vomitava as palavras, cada vez mais nervoso. “Ei, calma lá! Não quero saber como isso foi parar nas suas mãos!”, interrompeu o velho com tamanha ternura que o desarmou completamente: “Muito prazer, me chamo Vitório, e você?”

Augusto não entendeu por que o velho ficou tão animado, desatando a falar de livros e histórias e, de repente, estava contando a sua vida, dos rumos imprevisíveis que havia tomou, do segredo desvendado “muito tarde, mas ainda em tempo”, de que o destino não seria nada além de um chamado que nunca cessa. “Sempre há tempo, meu filho, sempre há. Ainda que seja apenas para pedir perdão”. Augusto começou a se apavorar, mas Vitório não perguntou absolutamente nada sobre ele. A manhã passou rapidamente e sem nada combinar, como se fosse óbvio que assim deveria ser, retornaram pelo mesmo caminho por onde vieram. Nada conversaram até estarem defronte o Bar do Alemão, onde o burburinho agitado de vozes pareceu despertar Vitório, que disse, com gravidade inédita na voz: “Bernanos… Esse que você leva no bolso… Em outro livro escreveu que as cidades respiram penosamente em meio às trevas, ofegantes, como se clamassem com uma voz profunda…”

“Por quê?”

“Tem certeza que não sabe?”

Entreolharam-se, com Augusto concordando com a cabeça, incerto. Vitório tirou do bolso uma nota de R$ 10 e a entregou sem dar chance de recusa, avisando que sempre estaria por ali aos domingos. Despediram-se e Augusto descobriu que, embora não quisesse voltar a estar inteiramente só, não temia a solidão. Não bebeu, passando o dia lendo o livro na praça da origem de todos os caminhos. Quando a noite chegou, voltou ao abrigo. Conseguiu a mesma cama, ainda debaixo da janela que novamente abriu, agora sem precisar fazer força. Vislumbrou pontos de estrelas por entre muitas nuvens, aproveitando a luminosidade vinda da rua para reler as últimas páginas do livro, sentindo que jamais esqueceria uma das últimas frases: “Nenhuma mentira chegou-lhe até os lábios, mesmo porque qualquer uma seria inútil.” Não sabia no que pensar. Talvez não devesse. Vai ver é assim que se começa, sem saber como, do pó, surgem pedacinhos. Serenamente adormeceu, sem dar pela falta da caixinha vermelha.

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