Faz tempo um filme não suscita tantos comentários e debates quanto Coringa, de Todd Philips, não? Embora fosse previsível – afinal, numa época em que todo mundo ou é um extremista ou está desesperado para não ser confundido com um, todo mundo tem de ter opinião sobre um filme que parece ser sobre isso. Logo, um festival de bobagens tem saído por aí. As mais estúpidas vieram de exibicionistas de falsas virtudes à esquerda e à direita que correram dizer que o filme seria um retrato dos males de uma ou de outra. Que preguiça dessa gente.
O personagem em si, porém, não tem nada de ideológico, político, absolutamente nada. Ele próprio deixou isso claro na entrevista durante o talk show ao fim do filme. Mas quem está prestando atenção ao sujeito e levando-o a sério, não é mesmo? Não deixa de ser irônico que quem ignorou as razões dele para fazer o que fez, tomando-o como “símbolo” da massa revoltada ao final, não apenas confessa involuntariamente que não entendeu nada do que assistiu, como nem sequer desconfia que também se encontra retratado na obra como “parte da doença, não da cura”.
(A partir daqui darei spoiler, siga por sua conta e risco)
No filme, a história pessoal de transformação de Arthur Fleck no Coringa pouco ou quase nada se relacionou com a circunstância social de Gotham, com a crise do lixo e dos ratos e da impotência da elite governante de resolver os problemas e atender à insatisfação popular. O primeiro crime por ele cometido no metrô não teve absolutamente nada a ver com o que os jornais noticiaram a respeito, como se fosse uma vingança do povo pobre contra os ricos da cidade. Foi a imprensa quem transformou o Coringa, a máscara de palhaço, num símbolo aglutinador da revolta popular que explodiu em caos social no fim da história. Portanto, quem assim continue a tratá-lo depois de ver o filme age de forma mais temerária do que a imprensa da ficção, que serviu como gatilho decisivo para o caos social final, pois não tem a desculpa de não saber a real causa daquele crime.
Quem ignorou as razões de Arthur para fazer o que fez confessa involuntariamente que não entendeu nada do que assistiu
O drama de Arthur Fleck é inteiramente individual, não coletivo. E banal. Porque no fundo tudo que ele queria era um amorzinho para chamar de seu. Se o relacionamento com a sua vizinha fosse real, duvido nascesse o Coringa. Mas ele não tinha relacionamento algum, como tampouco tinha amigos. Um único conhecido o tratava com consideração, o anão que, não por outra razão, teve não apenas sua vida poupada por Arthur como ainda recebeu um beijo de gratidão pela forma como o havia tratado até ali. A única relação íntima que Arthur tinha era com sua mãe, e também esta foi destruída durante o filme quando foi descobrindo a verdade sobre seu passado, sua história, da orfandade passando pelo abuso materno, desaguando na doença mental que praticamente impedia que estabelecesse alguma relação humana verdadeira com outra pessoa.
O que temos a partir daí é a história de um Bildungsroman do avesso, um “romance de formação” que não é sobre formação, mas deformação da personalidade. Acompanhamos a história de Arthur se transformando em Coringa a partir da perspectiva do próprio Arthur, da sua psicose. E uma das características centrais de toda psicose é a dificuldade, quando não impossibilidade, de discernir o que é real do que não é. O filme por vezes nos faz mergulhar nos delírios de Arthur, como nas cenas em que parece que sua vizinha o acompanha, mas por outras nos retira dela, revelando que tudo era apenas um delírio. Antes disso, teve a cena em que ele se imaginava no talk show, sendo entrevistado e adorado pelo apresentador, mas ali era claramente a imaginação de Arthur, um “sonho acordado”, e ele próprio sabia disso, não se tratando de um delírio. Mas o processo de deformação fará com que essa consciência seja perdida, passando o “sonho” a se confundir com a realidade ao ponto de não apenas ele não saber mais diferenciar uma da outra, mas também o espectador tendo dificuldade para tanto.
Ou seja, com a transformação completada surge uma dúvida inevitável: o que é real e irreal nas cenas finais? A entrevista parece ter sido real, os motins pela cidade também, mas e a ambulância batendo no carro da polícia, depois os mascarados tirando-o do carro e ele usando o capô como palco para sua plateia, será que foi real? Ele matou a psiquiatra no hospital? A ambiguidade se torna a regra aqui, algo necessário para a forma irônica com que o filme foi construído, simbolizado no sorriso de alegria do palhaço cuja vida era triste, miserável, sem motivo algum para sorrir.
Apesar da vítima que Arthur foi, da tragédia de sua vida, nada disso justifica o Coringa, pois houve uma escolha dele pelo mal, uma decisão de se tornar mau
Esse processo de deformação, de degradação da personalidade de Arthur está magistralmente retratado no filme, menos pelas etapas pelas quais ele passa do que pela forma da tortura psicológica que o espectador é levado a padecer também pela expectativa criada antes mesmo de o filme começar, sobre quando será o grande momento em que Arthur se tornará o Coringa. Será na cena do ônibus que ele vai começar a matar? Na do elevador? Quando demitido? A expectativa vira ansiedade e a empatia com Arthur aumenta, o que torna os momentos de violência física mais impactantes que o esperado.
Muito tem se falado sobre a violência do filme, mas o fato é que, comparado com quase todos os filmes de ação, policiais, de super-heróis, Coringa é o que menos tem cenas de violência explícita. São pouquíssimas. Mas funcionam muito mais do que se fossem dezenas, justamente porque têm uma função narrativa decisiva. São catárticas para Arthur que, depois de cometê-las, sente-se aliviado, autoafirmado. Depois do primeiro assassinato, triplo na verdade, ele se imagina beijando e sugere-se que teria transado com sua vizinha. Entra-se aqui no esquema típico da mente psicopata já muito retratado no cinema e tevê, como nos seriados MindHunter e Criminal Minds, em que os assassinatos cometidos são como a consumação do ato sexual. São “reguladores da psique”, para usar a corriqueira expressão psicanalítica.
Mas não para o espectador. É justamente nas cenas de violência física explícita que o filme nos distancia de Arthur. Não sentimos o que ele sente, a “paz de espírito”, a euforia do poder, o sabor da vitória, mas o contrário disso. Sofremos o impacto emocional de um trauma. As cenas chocam, portanto, não pela violência explícita, mas pela intensidade psíquica que nos deixa chocados, aparvalhados, com medo. E por isso acho uma estupidez imensa acreditar que o filme “incentivaria” a violência. Para quem gosta de usar a expressão “imaginação moral”, esse impacto emocional tem um potencial muito mais curativo, de recuo, de repensar o que está acontecendo, não de incentivo para se resolver os problemas da vida assim.
É pelas cenas de homicídio que se vê mais claramente a transformação de Arthur em Coringa. Na primeira, do triplo homicídio no trem, Arthur começou a matar para se defender. Ainda que possa não se caracterizar como legítima defesa, foi para se defender da surra que ele atirou e acabou matando, ao menos nos dois primeiros homens. Mas nas demais cenas houve uma escolha. Arthur decidiu matar sua mãe, o ex-colega que lhe emprestou um revólver e o apresentador do talk show. Todas essas mortes foram queridas, decididas e executadas com frieza psicopática, especialmente a última. Eis o Coringa, não mais Arthur.
Acho uma estupidez imensa acreditar que o filme “incentivaria” a violência
Apesar da vítima que Arthur foi, da tragédia de sua vida, da falta de amor, da doença mental, da falta de perspectiva, da falta de compaixão alheia, apesar de tudo que explica por que se tornou o Coringa, nada disso justifica o Coringa, pois, apesar de tudo isso, houve uma escolha dele pelo mal, uma decisão de se tornar mau. Na cena de abertura do filme vemos Arthur fazendo caretas de alegria e tristeza diante do espelho, emulando Charles Chaplin em Luzes da Ribalta. Um sorriso feliz no rosto de quem vivia uma vida tão triste e miserável, o que significa? Que o sujeito estava, apesar de tudo, escolhendo “o caminho do bem”, de lutar por algo melhor, para ser alguém bom, como um palhaço fazendo crianças doentes no hospital sorrirem por alguns minutos. Mas essa luta Arthur perdeu no fim, optando por trilhar outro caminho, o da maldade.
É por isso que se agiganta no filme a presença da cena do assassinato dos pais de Bruce Wayne, o futuro Batman, aparentemente desnecessária. Eis a piada irônica, ao menos assim me parece, que a psiquiatra da cena final não seria capaz de entender, mas que o espectador é, qual seja: o nascimento do Coringa dará causa ao surgimento do Batman, o cavaleiro das trevas. Bruce terá, no futuro, também bons motivos para escolher o caminho do mal pelo mal que lhe causaram no passado. Se não isso, como tinha dinheiro, poderia perfeitamente optar por se tornar indiferente a tudo, vivendo uma vida de playboy, que é o disfarce que usará para não descobrirem que sua escolha de vida foi, na verdade, oposta à de Arthur: a alternativa heroica.
Num mundo virado do avesso, com Coringas à direita e à esquerda, como é no fim do filme, a mera presença simbólica do menino que se levantará contra isso no futuro acaba por, ironicamente, inspirar não a mimetização da insanidade da massa de palhaços despersonalizados, nem a busca do refúgio na covardia autolisonjeadora e apontadora de dedos para culpar ou alertar para o perigo que seriam os outros, mas inspirar a coragem de ser aquele que prefere morrer para salvar alguém do que matar para se salvar.