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“Já assistiu a Estado Zero, na Netflix? Comparado com o que aquelas pessoas passaram eu não tenho problema algum”, disse-me uma amiga numa conversa sobre os dramas vividos durante esta pandemia. Indicação de quem a gente confia vira ordem, mas ainda que não confiasse, diante de um efeito desses me é irresistível não conferir a causa. Foi o que bastou para me fazer maratonar a minissérie australiana.
A série é inspirada em fatos reais, embora apenas uma das histórias tenha base factual, a da personagem Sophie Werner, uma australiana detida irregularmente num centro de detenção de imigrantes. Mais por culpa dela que se recusou a dizer quem era, como fica claro na série, mas o caso real revelou falhas consideráveis no sistema de controle migratório do governo australiano, que é o que se pretende “denunciar” na obra que o retrata entrelaçando outras tantas histórias problemáticas de recusa de imigrantes - todas fictícias, porém.
Como retrato do problema migratório a série é fraca, entretanto, acabando por reduzir um problema muito mais complexo, de ordem mundial, a um maniqueísmo no qual os imigrantes seriam todos bonzinhos e recusá-los seria errado e ponto final. Por outro lado, é daquelas coisas que atira no que viu, mas acerta no que não viu: o chamado “efeito Lúcifer”, conforme nominou o psicólogo Philip Zimbardo.
O “efeito Lúcifer” nada mais é do que a transformação de uma pessoa comum, boa, em uma pessoa má, um vilão, um “demônio”. Há muito material disponível para quem quiser se aprofundar e bom começo está na breve palestra dada por ele ao projeto TED Talks que pode ser assistida no YouTube. Zimbardo escreveu um livro sobre isso, no qual relata em detalhes seu famoso Experimento de Aprisionamento de Stanford, realizado em 1971 e que foi dramatizado no cinema em 2001, no filme alemão Das Experiment, depois refilmado nos EUA com o título The Experiment (disponível hoje na Amazon Prime), e também num filme mais recente de 2015 que levou o título do próprio experimento.
Em Estado Zero temos outro retrato dessa realidade estudada por Zimbardo, de que a causa que leva uma pessoa boa a praticar o mal pode não ser apenas por uma inclinação pessoal, ou uma situação desfavorável em que se encontra, mas o sistema maior no qual esses fatores se enquadram, ou seja, o arcabouço legal, político, econômico, cultural etc. É mais fácil ver isso no exemplo dado pela série do que em explicações teóricas. Na obra, a guarda Harriet representa esse mal por inclinação pessoal; o guarda Cam Samford vai se transformando pela situação em que se encontra; e a personagem Claire Kowitz, diretora do centro de detenção de imigrantes, nitidamente vai se tornando “má” em virtude do sistema jurídico e político muito maior e poderoso do que a situação vivida em seu local de trabalho.
Para entender o “efeito Lúcifer” é preciso levar em conta, portanto, esses três fatores, o pessoal, o situacional e o sistêmico ou institucional. O processo de degradação moral da pessoa a partir desse efeito, ou de “desindividuação”, como chama Zimbardo, pode ser visto claramente na série, nos filmes citados e nos estudos do psicólogo, mas o que interessa muito mais é o “remédio” para isto e Zimbardo é muito claro e direto: o heroísmo. Segundo ZImbardo, a mesma situação que pode nos transformar em vilão pode também despertar o herói em cada um. É o que também aconteceu na série com o guarda Samford e a diretora Kowitz, cada qual não suportando a culpa pelos males feitos que sua consciência moral não os deixava esquecer ou mentir para si mesmos, e agindo para consertar isso e desfazer ou reparar o mal.
E o heroísmo a que Zimbardo se refere não é o dos grandes feitos, mas o dos pequenos do dia-a-dia, como do ótimo exemplo real citado ao fim da palestra acima linkada, de um sujeito que arriscou sua vida para salvar outro que caiu nos trilhos do metrô de Nova York e depois disse: “Fiz o que qualquer um poderia fazer e o que todo mundo deveria fazer”. Para que algo assim seja uma disposição da pessoa diante de situações como esta no metrô podendo chegar a grandes sacrifícios quando o mal é sistêmico, Zimbardo defende que a educação das crianças seja repleta de exemplos assim, formando uma imaginação heróica desde cedo para que as circunstâncias não tenham de formar heróis, mas os encontre à espera delas.
Em tempos como os atuais, em que pessoas são presas por quererem andar na areia da praia ou sentar em bancos de praça ou ousarem abrir as portas de suas lojas; em tempos como os atuais em que ministros da suprema corte decidem que a sede do STF não é física, mas qualquer lugar da internet de onde se fale mal deles, declarando possuir, portanto, jurisdição planetária; em tempos em que o presidente do STF tem a cara-de-pau de se dizer “editor da sociedade”, com poderes de censurar previamente quem quer que seja; é em tempos assim, enfim, de efeito Lúcifer pandêmico que mais precisamos do remédio da imaginação heróica.