Eu devia ter por volta dos 14 anos de idade. Era uma quarta-feira qualquer e o costume se repetia. Quando meu pai voltava do trabalho, sempre trazia alguns salgados para o lanche/jantar. O cheiro das esfihas chegou antes dele naquele dia. Daquelas esfihas fechadas, enormes, que eram vendidas nas cantinas de escola. Mas aí veio uma inovação no script da tradição familiar: tinha uma esfiha a mais no pacote.
As regras lá em casa sempre tiveram critério e nesse caso era claro: cada filho teria direito à mesma quantidade de comida do outro. Ou seja, a esfiha restante teria de ser milimetricamente dividida em três pedaços entre eu e meus dois irmãos. Mas, como toda lei familiar é não escrita, cada um comia a sua mantendo um olhar atento na última e mais valiosa esfiha de todos os tempos e universos conhecidos.
Eis que o caçula resolveu dar uma de esperto e, antes de terminar a sua, tascou a mão grande na preciosa. Imediatamente eu e meu outro irmão reclamamos, mas sem muita ênfase, por desnecessária; afinal, a ilegalidade era tão patente que obviamente meus pais iriam intervir e fazê-lo devolver a esfiha para ser salomonicamente partilhada. Mas, para nosso espanto, nada disso aconteceu. Não houve intervenção paternal, nem maternal, nem explicação, apenas um muxoxo cansado que me rasga o coração até hoje: “Deixem…”
Certamente meus pais estavam cansados, sem energia para resolver algo tão banal. Mas não tive olhos para isso, como ainda me faltam as palavras para descrever minha indignação. A cólera de Antígona era nada e a de Aquiles seria pó perto da minha. Era de tal intensidade minha estupefação que fiquei paralisado, sem conseguir dizer nada, nem fazer nada, apenas me levantei e fui para o meu quarto, entre atordoado e revoltado. “Mas é só uma esfiha…”, pensava, tentando me convencer de que a coisa não era tão grave como parecia. Mas era grave, para mim era muito grave. Por quê? Não sabia dizer. Não naquele momento e durante muitos anos depois.
Hoje sei que, ali, fiquei menos indignado por uma injustiça do que aterrorizado diante da precariedade de toda lei humana. Ali, o Direito e a Justiça se me apresentaram na sua majestosa cegueira e impotência, guiados e realizados pela vontade humana que pode ser falha ou viciada ou caprichosa. Ali, passei a desconfiar de qualquer instituição erguida em leis, por enraizada nesse solo frágil e semovente da ação humana e sua contingência histórica. Se meus pais, que são meus pais, podiam falhar, até desistir, o que se dirá das garantias dadas por um “Estado Democrático de Direito”, por uma “Constituição Federal”? Ali, deparei-me com a esfinge indagando mortalmente: “decifra-me ou te devoro”. E devorado fiquei no ventre do Direito, indo à faculdade e trabalhando como seu “operador” até hoje.
Uma das consequências mais significativas decorrentes dessa descoberta do abismo humano sobre o qual se constrói o Direito foi a absoluta desconfiança com que passei a encarar toda regra, lei, norma, escrita ou não escrita, válida ou não. A partir daquele dia passei a considerar a lei totalmente dependente da vontade do tal “operador do Direito”, nunca o contrário. Não preciso dizer quão frustrado fiquei na faculdade quando, já nas primeiras aulas, me dei conta de que todo o ensino seria concentrado unicamente no aprendizado do texto das leis, enquanto a formação propriamente dita do tal “operador do Direito” era completamente desconsiderada.
Recordo que nada me incomodava mais do que assistir a aulas em que o professor passava o tempo inteiro mergulhado em comentários a artigos de lei, sem a mais mínima preocupação com a realidade da qual aquelas normas emergiram e sobre a qual se aplicavam. Os exemplos eram quase sempre inventados e muito toscos. Havia um professor que só sabia usar exemplos com uma lata de coca-cola. Minha maior ojeriza era contra as aulas de Direito Processual. Na época, o Código de Processo Civil passava por diversas alterações, mas a professora continuava lá lendo artigos prestes a serem revogados, apenas “alertando” do fato da mudança iminente, sendo incapaz de contextualizar a matéria em um plano maior e sistemático, onde qualquer mudança encontrasse o fundo de permanência que a justificasse.
Para mim era algo intragável, mas essa era a realidade do ensino do Direito e também dos concursos públicos. Tentei alguns, especialmente para o cargo de juiz. Mas minha intolerância à insensatez me impediu, graças a Deus, de passar ou ficar insistindo muito. Era torturante ser cobrado mais por saber as vírgulas da lei do que por possuir um mínimo de bom senso na sua interpretação e aplicação. Não que eu fosse do rol dos homens mais sensatos, mas ao menos me recusava a inverter os valores, achando que mais valia ser provido de experiência real da vida humana do que fluente em abstrações e tecnicismos jurídicos que, na prática, servem apenas para encobrir, como as togas, a nudez de uma vontade arbitrária, que é só o que explica a atuação de centenas de juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores por aí. Preciso citar exemplos ou um Favreto só já basta?
Enfim, é por isso que, quando surgem esses absurdos ativismos judiciais da atualidade, em número cada vez maior, em nada me espantam. Embora ache louvável quem tente defender nossas instituições ou o “Estado Democrático de Direito” ou a “Constituição Cidadã”, ainda que de forma histriônica como faz um Reinaldo Azevedo, no fim das contas tudo isso vale tanto quanto uma esfiha.
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