Com a mensagem mais do que clara dada pelos eleitores no primeiro turno, renovando consideravelmente a classe parlamentar e impondo derrotas homéricas a políticos históricos, o que deve ser consumado neste segundo turno com a provável eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, vários analistas da grande imprensa andam a dizer se tratar do resultado de um “ódio à política”.
O argumento é risível, confundindo a política com apoio a agentes políticos. Só faria algum sentido alegar isso, e olhe lá, se a escolha dos eleitores fosse contra a política em si, ou seja, contra as eleições, contra todos os partidos e candidatos, negando-se a votar e por aí vai. Mas nada disso aconteceu; o eleitorado apenas decidiu renovar de forma considerável os poderes Legislativo e Executivo dos estados e da Federação, escolhendo atores novos para desagrado desses ditos analistas. Ou seja, o argumento de “ódio à política” nada diz sobre o eleitor brasileiro, mas por outro lado diz muito sobre quem pensa assim dele, revelando o que o cientista social Christopher Lasch chamou de uma “revolta das elites” contra o cidadão comum.
Está para sair nova tradução do best-seller de Lasch, A Revolta das Elites e a Traição da Democracia, feita por Martim Vasques da Cunha, que em entrevista recente deu um bom resumo do que se trata essa revolta, diagnosticada por Lasch 20 anos atrás: “Ele descreve no livro como as elites foram se fechando, como foram entrando em suas respectivas torres de marfim, e como elas foram manipulando e manobrando a informação e o conhecimento (…) e como elas, que deveriam guiar a democracia, passaram a traí-la”, formando uma verdadeira “tirania dos especialistas” a sufocar o cidadão comum. O que se passa na atualidade, portanto, é o esgotamento dessa tirania, sua queda humilhante e consequente estrebuchar das elites que perderam o controle da situação com a libertação do cidadão do seu jugo, ao menos por enquanto.
O exemplo mais evidente disso é o ódio ao WhatsApp de autoridades, políticos e intelectuais porque o aplicativo de troca de mensagens permitiu exatamente romper o controle tirânico da informação e do conhecimento. Para essas elites, o WhatsApp se tornou um risco à democracia por supostamente servir como instrumento de desinformação e de disseminação de fake news, mas a verdade é o oposto disso: o aplicativo permite que a informação circule sem controle, cabendo a cada usuário a responsabilidade por averiguar, acreditar e repassar o que recebe. Mas os “donos do poder” têm horror à verdadeira liberdade e acreditam que ela só existe quando eles a controlam, “protegendo” o cidadão como se fôssemos vítimas ingênuas incapazes de discernir a verdade da mentira. Mas a realidade é outra, como uma das pesquisas Ibope desta semana indicou: 73% das pessoas ouvidas não receberam fake news contra candidatos na última semana do primeiro turno e, das que dizem ter recebido, 75% disseram que isso não teve influência alguma em sua escolha.
Se essas elites tivessem real interesse pela verdade, a democracia e a liberdade, deveriam se perguntar por que cargas d’água alguém daria mais credibilidade a um site qualquer cujo link foi encaminhado pelo WhatsApp do que às notícias saídas na grande imprensa. Não se perguntam porque a resposta levaria inevitavelmente a reconhecer que perderam a credibilidade. O conjunto de fatos significativos não noticiados que as pessoas só ficam sabendo pelas redes sociais (como a dimensão real de várias das manifestações de rua havidas nos últimos anos), somado aos fatos cujo tratamento jornalístico é nitidamente enviesado ou manipulado, é mais do que suficiente para que boa parte dos cidadãos não confie na imprensa como fonte segura de informação. Tanto é assim que uma pesquisa Datafolha de junho de 2018 apontou que apenas 16% confiam muito na imprensa, sendo que 45% pouco confiam e 37% não confiam. Ou seja, não é que as pessoas acreditem facilmente em fake news, é que elas não veem maior diferença destas para as true news, confiando muito mais em quem está encaminhando a mensagem do que no produtor do conteúdo, seja este da grande imprensa, seja de alguma fonte alternativa.
Essa recente “denúncia” da Folha de S.Paulo sobre o suposto uso do WhatsApp para fraudar as eleições é emblemático de tudo isso, revelando de modo explícito a arrogância dessa elite em se acreditar dotada de credibilidade simplesmente por ser quem é. A reportagem não trouxe nenhum fato ou indício de prova do que narrava, tão somente um “a Folha apurou”, como se isso bastasse. Antigamente, numa época em que as pessoas não tinham acesso à informação por outros meios que não a imprensa, isso até poderia ser suficiente para dar credibilidade à notícia. Mas hoje isso vale tanto quanto o “la garantia soy yo” dos contrabandistas. Ninguém mais “compra” as notícias só porque saíram na Folha de S.Paulo ou na rede Globo. Até porque em cinco minutos suas inconsistências ou manipulações são demolidas nas redes sociais e divulgadas pelas pessoas por aplicativos como o WhatsApp.
Não somente a grande imprensa não detém mais credibilidade, como as próprias instituições públicas também não. O TSE, depois da arrogância de nem sequer dar ouvidos às denúncias de possíveis problemas e fraudes nas urnas eletrônicas, até perseguindo quem as divulgasse, resolveu descer do salto, ao menos na aparência: fez uma auditoria pública em parte das urnas supostamente defeituosas e divulgou nesta semana uma “Carta ao Povo Brasileiro” em que afirma a “total integridade e confiabilidade das urnas eletrônicas e do modelo brasileiro de votação e apuração das eleições”. Acontece que horas depois, a cinco dias do segundo turno, anunciou que está trocando a empresa que faz a divulgação de informações sobre a apuração dos votos por não ter prestado um serviço adequado no primeiro turno e causado contratempo. Ora, como confiar em “total integridade e confiabilidade” no sistema desse jeito? A desconfiança da população, portanto, é mais do que justificada.
Enfim, atarantada pela realidade que vai se impondo e a depondo do poder de “dona da verdade”, resta às elites se revoltarem contra os fatos e estrebuchar sua indignação, tapando o sol com peneiras enquanto ainda não têm meios de, mais uma vez, controlar a livre circulação de informação. O momento atual é realmente revelador do desprezo e repugnância que nossas elites sentem não pelo povo, mas pela liberdade adquirida pelo cidadão comum de se informar graças à internet livre, coisa que, bem sabemos, talvez em breve seja retirada pelos mais novos membros das elites, que são as empresas como Facebook e Twitter, que cada vez mais tentam controlar seus usuários, restringindo a livre expressão, tornando-se censores totalitários sem nenhum pudor e, assim, mantendo acesa a chama dos traidores da democracia.