Nesta última terça vinha eu de carro lá do Barigui em direção ao centro, mais especificamente ao Centro Cultural Capela Santa Maria, onde às 20h haveria um bate-papo e entrevista com o escritor cubano Leonardo Padura, um dos convidados do Litercultura, um festival de literatura aqui de Curitiba. Imaginei que sendo em torno das 19h30, mais ou menos, o trânsito pesado do fim da tarde já teria diminuído consideravelmente e assim não demoraria tanto a chegar. De fato, foi assim até a proximidade da praça Santos Andrade, onde o congestionamento de carros era maior do que o normal e com viaturas policiais por toda parte.
Pensei que havia acontecido algo grave, algum crime cometido e a polícia estaria em perseguição aos bandidos, mas não. Quando consegui passar ao lado da praça descobri que havia alguma manifestação nas escadarias do prédio da UFPR. Havia poucas pessoas, parecendo ter mais faixas e bandeiras do que quem as segurasse, mas eram de difícil leitura, ainda mais à noite. Consegui discernir algumas com dizeres como “educação” e outras, em número maior, com “Lula”. Acho que estavam pedindo educação para o Lula, possivelmente.
Se foi, que coisa linda, gente, que coisa nobre, mas, com todo respeito a quem gostaria que os presidiários condenados recebessem mais educação nas prisões, não é por falta de opção que Lula não se educa, não é? Sejamos sinceros. Quem tem um STF só seu, julgando qualquer coisa que ele queira, passando-o na frente de todos os processos, pouco importando do que se trate e se foi apreciado nas instâncias inferiores, não terá dificuldade de receber autorização para ser visitado por professores na cadeia. Então, é claro que apoio mais educação para o Lula, mas ele tem de querer também, pô!
Se quiser, tenho até uma sugestão para começar, inclusive. Lula podia pedir para alguém (menos a Dilma) ler e explicar o livro mais famoso do Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros, um romance histórico sobre o assassinato de Leon Trótski por Ramòn Mercader entremeado à história ficcional do escritor Ivan, um cubano que teria conhecido Ramon e escrito a história tal como a ouvira do assassino, tornando-se o livro, no fim das contas, um símbolo perfeito do socialismo real em uma Havana, uma Cuba, mais do que decadente, mas caindo aos pedaços, com os cubanos, suas vítimas soterradas, representados por Ivan, como consta ao seu final: “(…) com esta história, que não é sua história, mas na verdade é, e é também a minha e de tanta gente que não pediu para fazer parte dela, mas que não conseguiu escapar”.
Não sei se algum dia Lula será livre, desconfio que não. E é claro que não estou me referindo à saída da prisão onde se encontra condenado pelos crimes que cometeu
No bate-papo no Litercultura, Padura disse que Ivan era também ele, claro. Entretanto, Padura poderia ter escapado, pois tem cidadania espanhola, o que lhe permite viajar com certa frequência, como nesta semana em que esteve no Brasil. Mas sempre retornou à Cuba, sempre retorna para morar na mesma casa em que nasceu e vive em Havana. Mesmo no pior momento da história cubana, preferiu ficar. Isso aconteceu depois da queda da URSS em 1991. Cuba entrou em colapso. Faltava tudo à população e são famosas as cenas de milhares de cubanos se lançando no mar dentro de barris e geladeiras para tentar chegar à Miami, distante cerca de 100 km da ilha. Muitos morreram tentando, mas o risco valia mais a pena do que ficar. Não para Padura, que chegou a visitar amigos e parentes nos EUA em 1992, mas retornou à Cuba mesmo sabendo que faltava comida, energia elétrica e muitas outras coisas. Faltava tudo isso e mais um pouco, mas teria o mais importante para um escritor: tempo. Naquele período produziu muito. Escreveu os romances policiais do detetive Mario Conde, ensaios enormes de 200 ou mais páginas, dentre outras coisas. Viveu de escrever. Como ele mesmo disse na conversa: “Escrevi como um louco para não morrer de louco”.
Sem dúvida, o mais admirável em Padura é sua fidelidade à vocação de escritor, ou seja, àquela liberdade interior impressionada pela verdade que o obriga a tentar expressá-la, pagando o preço por isso, que é: se não tentar, não será nada nem ninguém. Leonardo Padura é, dos escritores vivos, um dos mais íntegros, algo que transparece não apenas em suas obras, mas também e mais ainda pessoalmente. É digno representante da estirpe dos “exilados metafísicos”, no sentido expresso pelo poeta Joseph Brodsky. Não à toa escreveu um romance histórico-policial sobre o poeta cubano José María Heredia, que no século 19 teve de se exilar para sobreviver, chamado O romance de minha vida, publicado em 2002 e que ganhará sua primeira edição brasileira ainda neste ano.
Talvez isso explique porque consegue ser respeitado tanto à esquerda quanto à direita. Tanto que no Brasil seus livros são editados pela Boitempo, notória editora “de esquerda”, com O homem que amava os cachorros tendo prefácio de “frei” Beto e sendo um livro muito elogiado por Olavo de Carvalho. Ainda que as razões à esquerda e à direita sejam diversas para tanto, e são, o que permite a ambas se irmanarem na recomendação da leitura é o fato de que essa liberdade interior conquistada pelo autor transcende todo o jogo ideológico que cria a miragem de que o teto de casa é o céu.
Quando o escritor consegue transmitir isso com sua obra, como Padura consegue, o bem que faz a uma sociedade, qualquer que o leia, está bem expresso por Brodsky neste trecho de sua obra Sobre o exílio: “Como não há muita coisa que possa servir de base para nossas esperanças de um mundo melhor, como tudo o mais parece falhar de um modo ou de outro, precisamos sustentar de alguma maneira que a literatura é a única forma de segurança moral de uma sociedade, que ela é o antídoto permanente ao princípio do “homem como lobo do homem”, que ela oferece o melhor argumento contra qualquer tipo de solução coletiva que opere feito um trator – quando menos porque a diversidade humana é o que compõe a literatura e é sua raison d’être.”
Na saída do evento, caminhando pelo centro, cruzei com um dos manifestantes pela educação do Lula indo embora carregando uma bandeira com os dizeres “Lula Livre!”. Senti aquela “compaixão suja” que Ivan sentiu por Ramon Mercader em O homem que amava os cachorros: “não se pode sentir por ele outra coisa que não seja compaixão. E essa compaixão nos faz sentir sujos, contaminados pelo destino de um homem que não deveria merecer nenhuma piedade, nenhuma pena.” Não sei se algum dia Lula será livre, desconfio que não. E é claro que não estou me referindo à saída da prisão onde se encontra condenado pelos crimes que cometeu. Falo do outro cárcere em que já estava preso antes e continuará confinado depois que sair. Daquele cárcere que a boa literatura nos liberta, ainda que não tenhamos para onde ir senão nos exilar interiormente. Ao menos estaremos em boa companhia por lá, com bons homens como Leonardo Padura.
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