Foto: Divulgação| Foto:

Façamos um exercício de imaginação, cinéfilo leitor. Imagine que você é dono de cinema ou aquele que decide que filmes irão passar nele. Imagine que chegou um cujo apelo de público já vem garantido por ter sido realizado com o dinheiro desse mesmo público, via crowdfunding. Imagine que esse filme já entrou em cartaz em outros cinemas do país e o retorno tem sido ótimo, com salas lotadas ou quase isso. Haveria alguma razão para você recusar esse filme no seu cinema?

CARREGANDO :)

Depende do conteúdo? Entendo. Imaginemos que você seja um judeu que escapou do holocausto e chega ao seu cinema um filme fazendo proselitismo do nazismo, negando a existência do holocausto. Nada mais razoável do que você recusá-lo. Mas e se o filme não tem nada nem remotamente parecido com isso, sendo um documentário sobre uma das figuras mais importantes da história do país? Ainda que você discorde da abordagem do filme, que seja um crítico da figura retratada, se for minimamente razoável, reconhecerá que num país que tão pouco conhece de sua história é muito melhor incentivar filmes assim do que boicotá-los, não acha? Até para que a crítica à figura possa ser feita.

Ainda, se você lembrar que tem lei mandando você passar uma certa quantidade de filmes nacionais no seu cinema, algo que costuma dar prejuízo, e aí aparece esse filme nacional realizado através do maior crowdfunding cinematográfico da história do país, tendo sucesso de público e renda por onde passou, então a chance de ganhar um bom dinheiro com o filme é mais do que provável. Enfim, não sendo você daqueles que jogam dinheiro fora, não parece haver motivo minimamente decente para recusar um filme assim no seu cinema, certo? Pois aqui em Curitiba recusaram. O filme a que me refiro existe, é um documentário sobre o patrono da independência do Brasil, José Bonifácio. Curioso para saber a razão da recusa entrei em contato com o diretor do filme Bonifácio – O Fundador do Brasil, Mauro Ventura. Eis sua resposta sobre a razão alegada por pelo menos um dos cinemas:

Publicidade

“Não dá pra ter absoluta certeza sobre o motivo exato, mas a sequência da comunicação entre a nossa distribuidora, Roberta Claudino, e o programador de um dos cinemas que prospectamos oferece margem à imaginação. Primeiramente, mostraram-se solícitos e dispostos a alugar a sala – veja bem: alugar, não estávamos pleiteando uma exibição de risco compartilhado, dividindo os lucros, estávamos contratando um serviço oferecido pela empresa – e passamos todos os dados solicitados para fazer a locação. À partir daí, tornaram-se esquivos. Disseram que não poderiam exibir nosso filme pois só operavam com cópias em DCP (digital cinema package), ao que respondemos: “ok, nosso filme encontra-se nesse formato”; então retribuíram dizendo que somente o detentor dos direitos da obra poderia exibi-la, não vacilamos: “claro, somos detentores de todos os direitos da obra e a distribuição está sendo feita por nós mesmos”; tornaram a recuar informando que o filme precisaria estar registrado na Ancine e que era imprescindível termos a classificação indicativa do Ministério da Justiça, sem hesitar, respondemos: “temos registro na Ancine, todos os certificados, classificação indicativa, VPF (virtual Print fee) paga e nos encontrávamos rigorosamente em dia com todos os requisitos para exibição”. Diante disto, só restou ao programador declarar laconicamente: “não temos interesse em exibir seu filme”.”

Diante disso fica muito difícil dissociar esse “desinteresse” do contexto de “guerra cultural” em que vivemos. Até porque Bonifácio se segue à outro documentário em que Mauro participou como assistente de direção, feito também via crowdfunding, com grande sucesso de público e que enfrentou diversas dificuldades semelhantes para conseguir chegar aos cinemas. E não apenas isso. Trata-se de O Jardim das Aflições, de Josias Teófilo, que foi também recusado por quase todos os festivais de cinema do país, menos no CinePE, do qual sagrou-se vencedor. Perguntei ao Mauro se seu filme vem sofrendo do mesmo problema, ao que me respondeu:

“Vivemos numa época particularmente difícil, onde pouca coisa escapa à instrumentalização ideológica; a arte não é exceção. E o problema não está somente na origem da obra, quando seu criador se esforça para embutir mensagens com contornos políticos ou de opinião, mas a própria crítica enviesada passa a tentar identificar elementos contrários aos seus próprios juízos, ainda que estes não estejam presentes na obra analisada. A insensatez adquire feições kafkianas quando até mesmo sem ver a obra a pessoa já faz – e algumas vezes emite – juízo de valor sobre ela. Parece que a definição de Benedetto Croce que coloca a arte como “expressão de impressões” tem sua paródia pós-moderna na sentença “expressão de opiniões” ou algo que o valha.

Penso que alguns fatos ligados à nossa temporada possa ter origem nessa situação. Tivemos vários gestores de cinemas que se recusaram a exibir nosso filme e, amiúde, as justificativas eram sempre colocadas em circunstâncias que davam margem à suspeitas. A rarefeita produção de críticas dos profissionais especializados também é de se lamentar. E, por fim, a dificuldade para entrar em festivais nos faz pensar sobre os critérios de seleção desses eventos. Diante da reação do público de Bonifácio, só posso cogitar o tamanho do abismo entre os parâmetros de análise dos avaliadores e das pessoas que ocupam as poltronas das salas de cinema.”

Quis saber mais sobre essa diferença de recepção do filme pela crítica e pelo público. Eis a resposta: “Tivemos pouca resposta da crítica, mas o pouco que tivemos foi muito favorável. Gostei bastante do que li, mesmo em relação a exposição de alguma opinião desfavorável, tudo estava dentro do que esperávamos. Mas a resposta do público é de surpreender as mais elevadas expectativas; principalmente pelas reações dentro das salas de cinema. Não era raro ver muitos olhos marejados ao fim das sessões. O retorno que tivemos através das redes sociais foi sempre comovido, esperançoso e entusiasmado, tudo aquilo que queríamos suscitar no nosso público.”

Publicidade

Ficou curioso para assistir? Pois eu também. A boa notícia é que quem é de Curitiba terá ao menos uma única oportunidade para isso, conseguida pela produtora do filme que não desistiu de procurar um cinema que aceitasse alugar ao menos um único horário de uma de suas salas. A sessão será nesta próxima quarta-feira, dia 11/07, no cinema do Shopping Estação. Espero estar lá também, depois conto por aqui como foi e o que achei do filme.