1. Créditos Iniciais. A van do STF está subindo por estradas nas altas montanhas, no Colorado, terminando em um ponto de vista do Hotel Overlook, que fica sob o Monte Qtalo, a 40 km de Sidewinder, a cidade mais próxima.
2. Os ministros foram convidados por Alinski, o gerente do Overlook, para ali passar o tempo da pandemia. A câmera se afasta para mostrar a família STF, no saguão do Hotel Overlook, que tem um design de estilo nativo-americano, conversando com o gerente e Dworkin, o encarregado da manutenção, a quem foi apresentado o chefe de cozinha trazido pelo STF, Canotilho. Após as cortesias serem trocadas, Legislativo e Executivo (esposa e filho do STF) são levados para a cozinha com Canotilho, curiosos para verem se as lagostas adquiridas através do Processo Licitatório n.º 09.3874.92724.2019 chegaram vivas ao aquário móvel improvisado. Chegaram.
3. Ao entardecer, do lado de fora do hotel, Alinski, o gerente, despede-se dizendo: “vejo vocês quando a pandemia acabar”. Ficam sozinhos, cuidados apenas por Dworkin. No grande salão, organiza-se uma mesa para os julgamentos. Os ministros sentam e começam a trabalhar, mas logo se cansam com a fala monótona do relator da vez. O Legislativo entra alegremente, carregando uma bandeja de taças e garrafas de um Merlot famoso da safra de 2015, contendo quatro premiações internacionais, envelhecido em barril de carvalho, de primeiro uso, por dez meses. Mais felizes por verem que as garrafas chegaram sãs e salvas, conforme o edital licitatório, suspendem a sessão para um breve intervalo.
A princípio, os ministros ficam desconfortáveis com o misterioso livro, mas então um deles pega e começa vagarosamente a virar as páginas
4. Um grande livro de recortes aparece no centro da mesa de trabalho. Não estava lá antes. O livro tem capa de madeira ornamentada com desenhos rústicos e cortada em couro branco, com a palavra “Constituição” inscrita com uma ferramenta de forja. A princípio, os ministros ficam desconfortáveis com o livro, mas então um deles pega e começa vagarosamente a virar as páginas. Logo nas primeiras, lê que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Outro interrompe, dizendo ser preciso aí fazer uma “interpretação conforme a constituição” para vedar a manifestação de expressões como “cabeça de ovo”, não bastando apenas a possibilidade de reparação posterior. Todos concordam e um asterisco é feito à margem da frase, acompanhado da palavra: “depende”.
5. O Executivo está pedalando lentamente uma pequena bicicleta de duas rodas e com rodinhas de apoio ao longo do corredor do primeiro andar. Ouvimos os ministros discutindo no salão. O Executivo dobra uma esquina e pára abruptamente. No fim do longo corredor, vê duas menininhas, cerca de 9 e 11 anos, usando vestidos de festa e um brilhante e preto “Auxílio Emergencial” de couro. Elas estão assistindo a lives de cantores sertanejos no celular. Elas não olham para cima. O Executivo fecha os olhos com força e, quando os abre, as garotinhas se foram, mas as paredes do salão atrás delas estão salpicadas de sangue e mais sangue. Ele esconde os olhos com as mãos e, quando ousa olhar de novo, tudo voltou ao normal.
6. Chorando, o Executivo entra no salão onde o STF está no trabalho, lava as mãos e conta o que viu. O Legislativo nota a agitação e entra logo em seguida. O STF calmamente explica ao Executivo que ele está imaginando coisas – não pode haver duas menininhas trabalhando no hotel, pois o lockdown foi decretado liminarmente por eles e, como se sabe, a jurisdição do tribunal é mundial –, mas suas explicações pacientes dão lugar à irritação quando o Executivo continua insistindo que realmente as viu. Quando o Legislativo intervém dizendo que o Executivo está assustando o STF, os ânimos se exaltam. O STF finalmente bate no Executivo enquanto o Legislativo acusa o surrado de voltar para seus velhos hábitos, de quando falava muito.
7. O Executivo está silenciosamente brincando com seu WhatsApp no mezanino, que tem vista para o salão onde o STF está reunido à sua mesa, com as cabeças concentradas nos braços, quebrando caudas de lagosta e com pinças retirando a suculenta carne ao thermidor. Uma bola de criança salta no mezanino, vinda do corredor adjacente. O Executivo a pega e vai até o corredor, chamando: “Povo?” Olha para cima, para baixo, mas o corredor está vazio.
Percebe que a porta de um dos quartos está entreaberta, com uma chave pendurada na fechadura. Entra incerto no quarto. A porta do banheiro está também entreaberta e a luz está acesa por dentro. “Povo?”, chama de novo. Ele entra e vê uma cena horrível na banheira: uma mulher que está morta há muito tempo. Ela está inchada e roxa, com seus olhos vidrados e enormes como bolas de gude. Ela está sorrindo, seus lábios horríveis puxados para trás em uma careta. Como em um sonho, o Executivo é incapaz de gritar. Ele sussurra, quase inaudível, suplicando por ajuda.
O Legislativo o vê, carrega para seu quarto, bate a porta e a tranca. Coloca o Executivo cuidadosamente na cama. Ele parece cataléptico. O Legislativo o cobre com um cobertor e tenta falar suavemente com ele, propondo um acordão. O Executivo aquiesce e o Legislativo sai, faceiro, para avisar ao STF que tudo voltaria a ser como antes.
8. Ao ir se deitar, o STF escuta uma voz sussurrando vindo daquele quarto que permanece com a porta entreaberta, com a chave pendurada: “Todo o poder emana do povo”. Absolutamente horrorizado, o STF tranca a porta do quarto e fica no corredor, de olhos fechados, tentando recuperar a compostura. O som suave da maçaneta da porta sendo girada, como se alguém estivesse tentando sair. O STF caminha rapidamente para longe, a passos rígidos pelo corredor, procurando pelo Legislativo.
Passado pouco tempo, o STF bate à porta do Legislativo e entra. Conversam em voz baixa para evitar acordar o Executivo, que dormiu de roupa na cama do Legislativo. Este conta ao STF o que o Executivo disse que viu naquele outro quarto, mas o STF fica impassível. Nada em sua maneira sugere que escutou o que escutou.
9. O STF vai até a rede social, levanta a capota dos trending topics, tira o #STFvergonhamundial e o joga na pilha de “tratar como prova” de um inquérito em que ele próprio é o investigador, vítima e juiz. Enquanto isso, o Legislativo entra no salão, chama o STF em voz alta várias vezes. Começa a ficar com raiva, pensando que propositalmente não está respondendo. Vai até a mesa de julgados. Um manuscrito está em uma pilha grossa de papéis. Pega um grande punhado de páginas e as joga no chão. As páginas se espalham, flutuam e se estabelecem em centenas de lugares. Então seu olho cai em uma delas, que está a seus pés. Pega e lê: “MUITA LIMINAR E POUCA SESSÃO FAZ DO MINISTRO UM REIZÃO” foi digitado repetidamente, cobrindo a página inteira. Mira a página por alguns segundos, e então começa a se mover pela sala, curvando-se para olhar as demais. Todas cobertas com a mesma frase.
“MUITA LIMINAR E POUCA SESSÃO FAZ DO MINISTRO UM REIZÃO” foi digitado repetidamente, cobrindo a página inteira
“O que você achou?”, o STF diz, sorrindo. O Legislativo se assusta e nota que ele havia entrado em silêncio na sala. O atônito Legislativo se afasta com medo e sobe a escadaria larga e íngreme que leva ao mezanino. O STF o segue com um sorriso cruel. O Legislativo se tranca num banheiro, mas o STF arrebenta a porta com um machado, enfiando seu rosto no buraco aberto na porta, dizendo: “Here comes EssTiÉéf...”. As mãos do STF agarram o Legislativo pela garganta, mas este consegue um pequeno impulso para trás e afunda uma CPI profundamente na barriga do STF. Este grita e se afasta.
10. Um STF moribundo se arrasta lentamente em busca de um Legislativo maltratado e quase inconsciente, cujos detalhes devem ser trabalhados e que terminará com a morte do Estado Democrático de Direito. Enquanto este morre, o Legislativo ouve o roçar de asas de uma ema. Cambaleia para o saguão, encontrando as portas da entrada principal abertas e batendo ao vento. Rajadas de neve sopram no salão. Assolado por um novo e inexplicável terror, grita: “Quem está lá? Quem é?” De repente, pensa no Executivo e fica horrorizado ao perceber que durante a sua provação o havia esquecido completamente. Em um pânico culpado, corre de volta para o quarto, cuja porta está aberta. Por um instante, o Legislativo hesita do lado de fora, com medo do que encontrará. “Presidente?”, chama e, quando ninguém responde, corre e olha freneticamente, procurando. Ele não está lá.
11. O Legislativo, armado com outra CPI, os olhos brilhando, o cabelo voando descontroladamente, os pulmões quase explodindo, percorre os quartos e os corredores do hotel chamando pelo Executivo. Em sua busca frenética, se assemelhará a alguma figura demoníaca enlouquecida. Abrirá portas que não foram abertas antes e verá horrendas aparições de males passados do país. Enxerga, então, o encarregado da manutenção, Dworkin, perseguindo o Executivo, encurralando-o e dizendo: “O critério, como o buraco em um donut, não existe, exceto como uma área deixada aberta por um cinturão de restrição circundante. É, portanto, um conceito relativo”. Neste instante, o Legislativo adentra uivando, esfaqueando em frenesi com sua longa faca de impeachment. Quando o agonizante Executivo cai no chão, a trilha sonora desaparece e a sala fica em completo silêncio, exceto pelo vento lá fora. O Legislativo pega Dworkin e sai correndo da sala. A câmera não os segue, ficando por segundos no salão vazio. Então, começa a se mover lentamente em direção à mesa de julgados do STF. O caderno de recortes ainda está aberto sobre ela. A câmera começa a se aproximar do caderno, folheando todas as páginas, até ficar tão próxima que as letras se transfiguram em um homem: o Iluminista! A câmera fixa seu rosto sorridente por algum tempo. Então ouvimos o som, do lado de fora, da ema batendo asas e partindo. Vem o som de uma banda tocando. Que país é esse? ecoa pelo hotel. A mão de um militar entra em cena, fecha o livro e o leva. Nós ouvimos seus passos indo embora. Fade out.
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