Detalhe de “Romeu no leito de morte de Julieta”, de Henry Fuseli.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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Todo mundo conhece a história, mesmo sem nunca ter assistido à peça ou a lido. Ao menos sabe do fim, dos apaixonados que, por se considerarem impedidos de ficarem juntos pelo ódio entre suas famílias, preferem se matar. Tornaram-se arquétipos do amor romântico que vai às últimas consequências por sua paixão.

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Mas o que pouca gente se dá conta, mesmo quem conhece direito a obra, é de que a causa eficiente para levá-los à morte foi uma “medida de restrição de locomoção” decorrente de uma epidemia de peste bubônica. Um personagem central da peça é Frei Lourenço, quem casou às escondidas os pombinhos e depois arquitetou o plano de fuga de ambos, com Julieta tomando uma poção fabricada por ele para parecer que morreu durante algumas horas, podendo depois ser resgatada sem chamar atenção.

Se não houvesse a “restrição de mobilidade” decorrente da peste, a carta de Frei Lourenço teria chegado a Romeu e o fim da história seria completamente diferente do que foi

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Para o resgate dar certo, Frei Lourenço enviou uma carta para Romeu, que havia fugido para outra cidade, Mântua, explicando tudo e avisando da hora em que ele deveria voltar para salvar Julieta. Quem levava a carta era outro frei, João, que, porém, não conseguiu chegar a Mântua por causa do impedimento de entrar na cidade. Não acredite em mim, confira no texto da peça (na tradução de Bárbara Heliodora):

Frei João:
Eu procurei um outro irmão descalço,
Da nossa Ordem, para ir comigo,
Que aqui viera visitar os doentes.
Ao encontrá-lo, a guarda da cidade,
Pensando que nós tínhamos estado
Onde grassava a peste infecciosa,
Selou a porta e nos prendeu lá dentro;
E ali parou a minha ida para Mântua.

Frei Lourenço:
Quem levou minha carta pra Romeu?

Frei João:
Eu não pude mandá-la – aqui está –
E nem tampouco trazê-la de volta,
Tamanho era o medo da infecção.

Neste meio tempo, porém, chegou a Romeu a notícia de que Julieta teria se matado e, por não ficar sabendo da artimanha de Frei Lourenço, decidiu se matar bebendo veneno na sepultura da amada. E assim fez. Quando Julieta acordou, viu o corpo de Romeu e se apunhalou com uma lâmina, morrendo também.

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Ou seja, se não houvesse a “restrição de mobilidade” decorrente da peste, a carta teria chegado a Romeu e o fim da história seria completamente diferente do que foi. Por mais ódio que houvesse entre as famílias, fato é que não foi isso que os levou à morte, pois o lockdown chegou antes.

Já sei, já sei, foi falar em lockdown e dispararam vários gatilhos aí em você, leitor esgotado. Talvez você tenha saltado para concluir algo como: “Ó lá, até Shakespeare sabe que esse treco só nos ferra!” Ou, pelo contrário, você está aí indignado me cancelando porque “tecnicamente”, “cientificamente”, lockdown seria outra coisa.

Calma, respira, repare bem. Nada disse a favor ou contra o lockdown, apenas constatei um fato nesta peça de Shakespeare. Um fato que não é apenas uma coincidência curiosa com nosso tempo, mas um fato essencial para a compreensão tanto da obra como, também, do nosso tempo, se formos capazes de contemplar o espelho da realidade que toda obra de arte digna do nome nos fornece. Que realidade? A de uma tragédia.

Quando lemos Romeu e Julieta, sobram personagens para culparmos pela tragédia que já vinha em curso, dada a guerra civil existente pela rixa entre as famílias Capuleto e Montéquio. Os próprios protagonistas tiveram parcela considerável de culpa, por sua paixão desenfreada que não poderia terminar bem, como alertou Frei Lourenço ao saber da nova paixonite de Romeu, que até horas antes sentia o mesmo por outra mulher, Rosalina: “Que amor tão tolo pouca vida tem”. Mas, por mais culpados que existissem, a presença quase ignorada da peste tornou a culpa menor que o infortúnio.

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Não vivemos assim hoje? Nesta nossa quase guerra civil entre nossos Capuletos e Montéquios da vez, os “bolsonaristas” e os “#elenão” (queira você ou não, de alguma dessas “famílias” está fazendo parte), com a paixão da ira completamente descontrolada (como a do desejo de Romeu e Julieta) a procurar bodes expiatórios o tempo todo, a tragédia vai se agigantando, impávida e indiferente aos nossos dramas e achismos, sendo a única coisa decisiva.

Qualquer um que passar poucas horas na linha de frente de enfrentamento da Covid-19 verá nossa impotência diante da doença e entenderá que alguma medida de distanciamento social se faz necessária

Mas toda tragédia traz algo de bom, por mais incrível e difícil de aceitar que seja. Ela desperta dois sentimentos, ao menos. O primeiro, o temor, algo óbvio e que dispensa maiores comentários. O segundo, a piedade, ou seja, a compaixão pelo sofrimento alheio. E isso é bom.

Na peça, a tragédia, despertando tais sentimentos, fazem com que Capuletos e Montéquios façam as pazes. Na nossa realidade atual, isso parece impossível. E talvez seja. Mas a piedade de que precisamos não tem a ver com a guerra ideológica que nos devasta. Tem a ver com a tragédia da pandemia.

Qualquer um que passar poucas horas na linha de frente de enfrentamento da Covid-19 verá nossa impotência diante da doença e entenderá que alguma medida de distanciamento social se faz necessária. E que o lockdown, independentemente do que diga a ciência a respeito, é medida de desespero. Tanto que a forma como ele tem sido decretado, de uma hora para outra, comprova que não foi a ciência quem guiou as decisões, mas o pânico.

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Qualquer um que passar poucas horas na pele de quem não pode abrir seu negócio, não pode trabalhar, não pode ganhar seu sustento, entenderá o desespero que o leva a descumprir as restrições e discordar do lockdown

Em Curitiba, por exemplo, numa sexta às 20 horas o prefeito decretou que quatro horas depois ficaria tudo fechado, numa live ao lado de sua esposa, tomado de pavor e súplica. Sem qualquer prévio aviso, sem qualquer preparação, tudo no improviso, fez o desesperado apelo para que a população aceitasse a medida.

Da mesma forma, qualquer um que passar poucas horas na pele de quem não pode abrir seu negócio, não pode trabalhar, não pode ganhar seu sustento, entenderá o desespero que o leva a descumprir as restrições e discordar do lockdown. Ainda mais depois de um ano, cujas perdas já são tamanhas que tornaram o lockdown tão inevitável quanto inviável.

Enfim, compaixão pelo sofrimento alheio, a piedade, é o que uma tragédia dessa magnitude pode despertar nas pessoas, e espero que desperte. E esta é a função humanizadora da literatura, da arte em geral. Não à toa Aristóteles considerava a Tragédia, como gênero, superior a tudo o mais. Porque por ela, como diz o coro na peça de Shakespeare, “se tiverem paciência para ouvir-nos, havemos de lutar para corrigir-nos”.