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Como professor, trabalho quase exclusivamente com a imaginação e o imaginário, ajudando o aluno a educar aquela e a formar este. Sim, são coisas diferentes. Não, não tem uma “matéria” na escola que ensine essas coisas. Nunca teve, em verdade, pois eram daquelas coisas de que a natureza cuidava. Como entortamos a natureza humana já faz um tempinho razoável, precisamos aprender o que antes não precisava ser ensinado. Está aí a logoterapia, a terapia do sentido da vida, para não me deixar mentir.

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Não preciso dizer que um dos pratos principais das minhas aulas é o Papai Noel. E é só dizer a obviedade de que o Papai Noel é tão real quanto eu e você e já imagino os emoticons todos da sua mente dando cambalhotas de incredulidade. Compreendo, mas insisto: Papai Noel é tão real quanto eu e você. Se discorda é porque só acredita que é real aquilo que é material. Mas o Papai Noel existe do mesmo modo como existem as imagens em sua memória. Você duvida da realidade de suas lembranças?

Talvez devesse, hein? Quem garante aconteceu exatamente como você se lembra? Nunca foi traído por sua memória? E se ela pode te enganar, quem garante a realidade do que você recorda? Ninguém, nada, niente, nothing, nihil. Tudo o que você pode fazer é confiar nas imagens da sua memória. Não só nas imagens da memória, também quanto à permanência da realidade física e material mais palpável, tudo o que você pode fazer a respeito é confiar. Quem te garante tudo não se desfará daqui a 5 minutos? O que te faz adormecer toda noite, senão a confiança de que continuará vivo no dia seguinte e que as coisas permanecerão como estavam antes de você dormir? Estavam aqui ou aí os dinossauros para não me deixar mentir. Você pode morrer agora, inclusive.

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Como não morreu, sigamos. Falava eu no Papai Noel, na realidade da sua existência. No clássico natalino de sessão-da-tarde O MIlagre da Rua 34, Papai Noel aparece em carne e osso. Como isso seria impossível e o filme é americano, a questão vai parar no tribunal. Há duas versões do filme. Prefiro a refilmagem de 1994 do que a original, de 1947. É da refilmagem que trato aqui. Duas questões precisam ser esclarecidas: se Papai Noel existe e, em existindo, se o bom velhinho que diz ser ele é ele mesmo. A primeira o filme responde a contento, mostrando que se trata de questão de confiar na realidade invisível, coisa que a humanidade em geral vem fazendo há séculos, como notamos sempre que dezembro chega. Todo o drama do filme é este: provar a quem não crê que o incrível existe, mas não “no mundo físico, estão no mundo dos sonhos”, como disse a certa altura do julgamento o Papai Noel.

Se você pensar bem, o mundo dos sonhos nada mais é do que um mundo de imagens, tal qual o da memória. O fato de que damos credibilidade automática às imagens da memória e quase nenhuma às imagens do mundo dos sonhos nada prova ou diz sobre a realidade destas últimas. No fim das contas, trata-se de confiar nelas tanto quanto confiamos nas da memória. Esse mundo dos sonhos é o mundo onde o Papai Noel vive junto com todos os super-heróis inventados, por exemplo, com todos os demais personagens literários e mitológicos, concebidos e por conceber.

Agora perceba que, uma vez existente esse mundo de sonhos, sua presença para nós se dá como uma imagem dependente da nossa capacidade de recordá-lo, ou seja, depende da memória. Significa dizer que o Papai Noel, sempre que é lembrado, volta a estar presente como realidade, seja em uma imagem interior ou encarnada em algum símbolo material, ainda que seja um sujeito mirrado, de barba postiça e mal humorado. Não é assim também com nossos entes queridos já falecidos? Sua lembrança faz com que estejam conosco no instante em que nos lembramos, ainda que não materialmente. Por isso guardamos fotos, recordações, histórias, tudo o que nos deixa um registro da sua existência que recusamos deixar desaparecer como imagem.

Voltando ao filme. O que nele não se resolve é o segundo ponto, se o bom velhinho do filme seria mesmo o Papai Noel de verdade, passando do primeiro a este como se uma coisa fosse prova da outra. E não é. E o filme poderia ter feito essa prova tranquilamente, pois no instante em que o promotor trouxe uma rena ao plenário e pediu ao velhinho que a fizesse voar, bastava ele ter feito isso. Mas respondeu que não poderia, salvo na véspera de Natal. Acontece que era véspera de Natal. Ainda que ele tenha dado outros sinais durante o filme de que era mesmo o Papai Noel, nenhum era mais necessário, mais eloquente e inegável do que sair voando com a rena naquela hora.

Ou seja, embora seja um filme defensor da realidade da existência do Papai Noel e tudo o que ele simboliza, também não deixa de ser um belo exemplar dos limites e fragilidades da nossa fé. Sim, fé. Confiança e fé são sinônimas, então, se você sente engulhos com a palavra “fé”, substitua à vontade por confiança que dará no mesmo. Podemos e devemos acreditar em Papai Noel, confiar em sua existência, mas se ele sair desse mundo de sonhos, de símbolos, e encarnar na pessoa de algum bom velhinho, aí não. Se fizer isso, aí viramos São Tomé na hora e exigimos uma prova – um milagre, no caso, como sair voando com as renas.

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O que diríamos ou faríamos, então, se Deus encarnasse também?

Sabemos o que diríamos e faríamos. Exigiríamos milagres, exatamente como no filme. E assim dissemos e fizemos, assim dizemos e fazemos ainda hoje. E Ele nos deu em profusão. Desses milagres, dois foram os maiores. O primeiro, a concepção virginal de Maria com o consequente nascimento do menino Jesus. Nas palavras de Bento XVI, no seu indispensável A Infância de Jesus: “Trata-se de uma realidade verdadeira? Ou por ventura foram aplicadas às figuras de Jesus e sua Mãe as verdades de tais arquétipos?” Ele se refere aos arquétipos de mitos egípcios, também de outras origens, inclusive à quarta écloga de Virgílio, na Eneida.

De novo, voltamos ao drama da confiabilidade das imagens da memória. Se tudo que temos do que nos aconteceu é uma imagem que ficou registrada e na qual confiamos, não seria diferente com a concepção e nascimento de Jesus Cristo. Quando não vivemos um fato, temos de contar com a imagem relatada por quem o viveu. No caso, só uma pessoa esteve presente quando o anjo Gabriel apareceu a Maria. A própria Maria. Quando lemos os relatos do nascimento e infância de Jesus no Novo Testamento, só ela pode ser a fonte primeira e maior de tudo o que sabemos a respeito. Mas tudo que tem a nos oferecer é seu relato, nenhuma prova.

Somente pelos milagres posteriores de Jesus é que podemos confiar de fato em Maria. Por isso, quando João Batista mandou perguntar a Jesus se era Ele o Messias, Jesus respondeu: “contem o que viram e ouviram”, ou seja, que relatassem os milagres. Só assim para João Batista confiar. Só assim para confiarmos no relato de Maria.

Mas isso só aconteceu depois dos 30 anos de idade dEle. Imagine, então, o que diríamos se nesse período ela viesse e nos contar: “meu filho é a encarnação do Verbo Divino”. Faríamos como a turma do filme fez com o Papai Noel: internaríamos a pobre coitada, tirando de circulação. Mas Maria não contou, “guardou todas essas coisas em seu coração”. E é graças a essa imagem da memória de Maria, do que ficou guardado em seu coração, que podemos viver esse tempo do Advento tal como ela acolheu a mensagem do anjo Gabriel: confiando, tendo fé. Em quê? Bento XVI, no mesmo livro, recorda uma homilia do Advento de São Bernardo de Claraval, que traz essa resposta: “Agora Deus procura entrar de novo no mundo; bate à porta de Maria. Tem necessidade do concurso da liberdade humana: não pode redimir o homem criado livre, sem um ‘sim’ livre à sua vontade. Ao criar a liberdade, de certo modo, Deus se tornou dependente do homem; o seu poder está ligado ao ‘sim’ não forçado de uma pessoa humana”.

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Deus se tornou dependente do homem… Por isso que depois, quando Jesus realizava milagres em quantidade tal que deixaria nossas notificações de mensagens em smartphones com inveja, Ele dizia para cada agraciado: “tua fé te salvou”. Todo Natal, portanto, é Deus batendo de novo à sua porta, querendo entrar se você deixar, se você fizer como Maria, confiando ao dizer: “faça-se em mim segundo a tua palavra”.  Aí será como disse o profeta Jeremias: “Bendito o homem que confia no Senhor, e cuja confiança é o Senhor” (Jeremias 17, 7).