Como você conta sua história de vida? Eu perguntei como, não qual sua história. Já se deu conta de que você tem liberdade total como narrador da sua biografia? E não falo aqui de mentir, falo de como contar e interpretar os fatos realmente acontecidos. Dou um exemplo pessoal. Quando eu tinha por volta dos 7 anos, fugi da escola. Era um dia em que a aula acabava mais cedo por causa de uma reunião de professores e minha mãe não podia me buscar antes. Eu teria de esperar uns 10 minutos por ela, mas meu pânico de ficar esquecido pelos séculos dos séculos foi muito maior. Quando vi, estava caminhando para casa chorando.
Quando eu tinha uns 14 anos, morria de vergonha dessa história. Achava que eu tinha sido muito covarde, filhinho da mamãe. Mas aos 21 comecei a ver por outro ponto de vista. Ainda que apavorado, também foi verdade que não fiquei paralisado, fiz algo para enfrentar o medo e resolver meu problema. Há também um tanto de coragem em sair pela cidade sozinho querendo ir para casa. E eu sabia exatamente o caminho por fazer. Ora, a história não era tão vergonhosa assim, portanto. Dependendo de como eu a contasse, poderia ser também um bom exemplo de coragem e ousadia, por que não?
Foi lá pelos 29 anos que, ao revisitar essa história, espantei-me com esse poder narrativo imenso de contar e interpretar os mesmos fatos de forma oposta. E aí fiquei com a pergunta: qual o significado maior, verdadeiro, definitivo dessa minha história? Existe algum, nos fatos mesmo, capaz de abarcar o medo e a coragem, dando forma final ao que vivi? Ou tudo que existe é meu poder/liberdade de dar o significado que eu bem entender? Só fui começar a encontrar resposta quando me dei conta do óbvio: o narrador da história não é seu autor.
Quando você conta sua história você se torna um personagem dela, é fácil se enxergar assim. Mas é igualmente fácil o narrador se deixar seduzir por esse poder/liberdade de narrar e aí começar a se considerar autor da própria história, absolutizando sua vontade e sua interpretação como se fosse um deus a ter se dado uma origem e construindo um destino com sentido. Mas não precisa de muito para se dar conta de que isso é sandice. Afinal, foi você quem escolheu nascer no dia em que nasceu? No lugar em que nasceu? Na família em que nasceu? Com a aparência física que tem? Foi você quem decidiu em que casa morar e em que escola estudar? É só repassar os lances decisivos da sua história para perceber que a maior parte dela não foi decidida ou criada por você. Ou seja, somos partícipes, às vezes coautores, da nossa própria história, mais nada.
Significa dizer, portanto, que quando decidimos contar nossa própria história estamos mais para um detetive de romance policial à procura da verdade, do autor e seu motivo. Por isso o grande modelo de narrador da própria história que temos é Santo Agostinho, com suas Confissões. Quem já as leu sabe que Agostinho se coloca ali não como quem está contando sua história para os outros (o que seria apenas vaidade), mas como quem procura o sentido e significado da sua própria criação. É um narrador que conta sua história olhando e perguntando o tempo todo para o Autor dessa mesma história.
Meio sem querer, foi nisso a que cheguei naqueles meus 29 anos quando me perguntei: “tá, se posso narrar minha história assim e assado, qual foi o real significado dela?” Eu nem sabia, mas começava a me dirigir ao Autor da minha história. Aí me caiu a ficha de que mais importante que o que eu fiz e o que tinha acontecido até eu fugir foi o que ocorreu três quadras adiante. Eu havia passado por dezenas de pessoas, mas apenas uma mulher não fingiu que não havia nada de errado com uma criança de 7 anos sozinha chorando pela rua e me parou, perguntando o que tinha acontecido. Eu mal consegui explicar, mas ela entendeu. Estava indo buscar seu filho no mesmo colégio e me levou consigo. Quando cheguei, estava minha mãe numa esquina, desesperada, me procurando e minha professora na outra, igualmente desesperada. Mas eu não. No instante mesmo em que aquela mulher me parou na rua, acalmei na hora. Sabia ficaria tudo bem.
Mais do que providencial, a boa ação daquela mulher significou tudo o que eu tinha vivido ali. Sim, havia o medo. Sim, houve covardia, mas também coragem. Sim, houve até ousadia. Mas nada disso foi mais forte ou mais significativo do que a bondade daquela mulher me parando e me devolvendo à minha mãe. Quando conto essa passagem da minha história sempre me comovo com a atitude dessa mulher. Sim, eu sei, dirão que ela não fez nada de mais, que no lugar dela muitos teriam feito o mesmo. Talvez, embora eu tivesse passado por bastante gente até ali. Mas só ela fez o que fez, sem saber o quão decisiva seria em minha vida. Porque esse evento em minha história é dos mais marcantes para mim, nele se revelou algo de quem eu devo ser e até que tento ser: fazer aos outros o que ela fez por mim.
Ou seja, ela foi meu George Bailey. Não conhece o George? Nunca assistiu ao clássico A Felicidade Não Se Compra (It’s a Wonderful Life)? Então, para tudo e vai assistir. Já, agora, para ontem. Não tem época melhor para assistir, aliás. É o melhor filme natalino que já fizeram. E, se você é como eu era aos 7 anos e morre de medo de spoilers, melhor parar de ler por aqui porque vou contar como o filme termina. Ou melhor, como começa.
A história se inicia com os moradores de Bedford Falls rezando por George. A razão para isso só descobriremos no fim, mas o diferente aqui é a ousadia do diretor, Frank Capra, em formatar todo o roteiro, toda a história, não pela ótica humana, mas pela ótica do Autor de todas as histórias. As orações são recebidas por anjos que decidem enviar um dos seus para ajudar George. Para tanto, ele precisa conhecer quem foi George, ou seja, sua história de vida. E aí tudo o que é narrado o é de acordo com o que interessa para a salvação de George, ou seja, tudo o que interessa para o Autor da história. E o que temos, então, é um rosário de boas ações de George, umas singelas, outras heroicas, mas todas significando claramente uma mesma e só coisa: George foi um escolhido para permanecer em Bedford Falls e ajudar todos que moravam ali.
É bem interessante assistir ao filme e contrastar os sonhos que George tinha para sua vida, tudo que gostaria de fazer, e o quanto nada aconteceu como ele queria. Sempre acontecia algo que o obrigava a ficar e ajudar alguém, desde o irmão até a cidade inteira, como no caso da crise de 1929. Certamente, se fosse George ou até qualquer outro a narrar sua história, dificilmente conseguiria contá-la à luz desse sentido e significado que o Autor da história lhe deu: ainda que George não gostasse, era para ficar em Bedford Falls e ajudar sua cidade. Mas ele não conseguia enxergar o bom homem que era, nem o bem que havia feito e aí o anjo lhe dá uma grande graça: a chance de ver como seria Bedford Falls sem ele. Como se ele não tivesse existido. E aí tudo seria diferente, não apenas para sua família.
Este filme é uma preciosidade porque nos ensina a contar nossa própria história não à luz de nossos sonhos, vontades, feitos, malfeitos, mas procurando pelo sentido e significado que o Autor da história nos deu de graça. Santo Agostinho fez isso em suas Confissões; esse filme ilustra isso ao nos colocar no ponto de vista de Deus narrando a história de uma de suas criaturas. Ele está sempre presente, agindo como se não fosse Ele, mas é sempre Ele. Nada é por acaso. Essa presença do Autor da história só pode ser assim mesmo. Pegue qualquer romance e repare como o autor, quando é bom, desaparece por trás da história, nem parece que a escreveu, criando um narrador tão bom que até esquecemos foi também criado por ele, é apenas mais um personagem, ainda que onisciente. E Ele permanece ali até o fim. Sem Ele nem história tem.
Neste Natal algo quase miraculoso aconteceu: saiu um filme do mainstream narrando a história do nascimento de Jesus pelo ponto de vista do Autor do Natal. Refiro-me à animação da Sony A Estrela de Belém, que reconta a história do nascimento de Jesus pela voz do burro do presépio. Nem tudo é fidedigno, claro, mas o essencial está ali, explicitamente ali. E o que mais gostei é justamente de terem destacado o papel da estrela de Belém, aquela que colocamos no alto de nossos pinheirinhos. É dela que vêm os anjos anunciando a Maria, José e aos pastores. É dela que vem a luz que guia a Sagrada Família na sua ida a Belém e ao encontro da manjedoura, onde a luz repousa. E fica claro também no filme que todos os “acasos” que acontecem a quem quer impedir o nascimento são todos intervenções divinas para que a história se passe exatamente como seu Autor quer.
George Bailey foi salvo, no fim, pelas mesmas pessoas a quem ajudou durante sua vida. Mas George não teria ajudado quase nenhuma se Deus não tivesse agido para que assim acontecesse. Como nenhuma teria lhe ajudado se não fosse pela intervenção do anjo, exatamente como na história de José e Maria. Não se trata, por óbvio, de retirar o livre arbítrio de George, ou de José e Maria. Pelo contrário, trata-se justamente de criar o contexto no qual a liberdade deles foi plena para serem coautores de suas histórias, para dizerem “sim”.
Em nossas vidas podemos não enxergar a presença do Autor. Na maioria das vezes nada mais vemos do que o acaso, a sorte ou azar, a bondade ou maldade alheia, a nossa própria bondade ou maldade. Mas, se contarmos nossa história direito, se narramos procurando por Ele, O encontraremos sempre, principalmente nas pequenas coisas, como ajudando um menino chorando perdido no meio da rua a voltar para sua mãe ou encarnado num bebê nascido numa manjedoura.