No auge da fervura política que vivemos durante o calvário do segundo governo de Dilma Rousseff, era comum escutar histórias de brigas em família nos jantares de fim de ano, também de amigos se distanciando por conta da política. Em especial no Natal de 2015, logo depois de o processo de impeachment ter se iniciado. Se não aconteceu com você, de ver amigos se afastando ou você mesmo se afastando, cheio de razão, certamente conhece casos assim. Talvez tudo tenha se normalizado, voltado ao que era, mas 2018 vem aí e é provável as coisas fiquem ainda mais acirradas e fragmentadas.
O Brasil vive um cenário de guerra. Guerra literal, com mais de 60 mil homicídios por ano e que parece muito longe de acabar, e a chamada guerra cultural, o que significa dizer que a cultura foi ideologizada, com o debate público se tornando impossível e as tentativas de diálogo, inúteis. Talvez seja mais fácil acabar com a guerra civil que com a cultural. Porque aquela pode se resolver com o uso da força, ao menos ser remediada a ponto de tornar a vida nas grandes cidades razoável. Mas a cultural não se vence assim, não se vence quando se quer impor uma visão de mundo, tentando calar o “inimigo”, seja pela censura explícita, seja pela censura covarde que finge que o outro não existe ou o deslegitima dizendo não valer a pena nem ser mencionado etc.
Há conserto? Seria fácil dizer que sim e fazer um discursinho natalino de união e paz e amor para isentão dormir. Mas não é. Primeiro, porque a solução não começa pelo outro, mas por si. A saída fácil – e errada – é a escolhida por Marcia Tiburi, que em 2015 escreveu um livro chamado Como conversar com um fascista, dando um exemplo espetacular de como acusar os outros do que ela mesma fez no livro. Aliás, a motivação pessoal para escrevê-lo veio de um desses jantares em família onde os fascistas eram os outros, nunca ela. Ou seja, se você é incapaz de se olhar no espelho e reconhecer o “fascista” que jaz dentro de si, achando que o problema é dos outros, sinto dizer, mas o problema é justamente você. Segundo, porque numa circunstância de guerra cultural ninguém está impune, pois o chamado efeito Lúcifer, conforme ensinado pelo psicólogo Phil Zimbardo, contamina todo mundo, fazendo com que pessoas boas se tornem más. Quem quiser saber mais tem algumas palestras dele disponíveis no YouTube, explicando como funciona, assim como seu livro O Efeito Lúcifer – como pessoas boas se tornam más.
O interessante da teoria de Zimbardo é como se conserta uma situação luciferina. Ele afirma que só tem uma forma: através de atos heroicos, não raro acompanhados de martírio. Mas não se trata de ações extraordinárias, dignas de super-heróis. Não, trata-se de ações de uma pessoa comum agindo de forma incomum para a situação em que se encontra. Por exemplo, imagine que você é um soldado de guerra, na trincheira, e comece a cantarolar algo, seguido por seus companheiros. De repente, do outro lado da trincheira, do lado inimigo, começam a lhe acompanhar também no canto. Eis que você se arrisca, levanta a cabeça, acena ao inimigo e isso basta como convite a um cessar-fogo. Impossível?
Pois o impossível aconteceu no Natal de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial. Do lado alemão havia um soldado que era tenor e cantou para os companheiros na véspera do Natal. O som chegou às trincheiras inimigas com os soldados aplaudindo no fim. Foi o início de algo impossível de imaginar. Os soldados fizeram um cessar-fogo para celebrar o Natal, participaram de uma missa, jogaram futebol e fizeram um funeral comum para seus mortos. E o milagre de Natal se espalhou por outras frentes de batalha, forçando os comandos a transferirem seus batalhões por conta da amizade criada entre os soldados “inimigos”.
Esse fato virou filme em 2005, chamado Feliz Natal (Joeyux Noel) e vale assistir ou rever neste fim de ano. São vários pequenos atos de diversos soldados que possibilitaram algo assim, atos obviamente heroicos naquele contexto e que dissolveram por completo a insensatez da guerra, ainda que apenas por pouco tempo, logo neutralizados pela ação dos comandos.
Durante a primeira quinzena do Advento do Natal a figura central é a de João Batista, o precursor que admoestava a todos para que se arrependessem de seus pecados, que desentortassem as veredas do Senhor (a tradução mais comum é “endireitar as veredas”, mas, como irão me acusar de estar puxando a brasa para a “direita”, melhor usar um sinônimo). Os atos heroicos que Zimbardo afirma serem capazes de mudar um contexto luciferino são atos assim, desentortantes do que está entortado.
O poder desentortante do cessar-fogo voluntário dos soldados era tamanho que o exército francês, por exemplo, tentou apagar a memória desses fatos, não deixando que ficassem registradas as cartas dos seus soldados contando a história. Inclusive proibiram o filme de ser filmado em solo francês, obrigando-o a ser feito na Romênia. Porque sabem o quanto ações assim desentortam uma guerra, podendo até impossibilitá-la, forçando outra solução que só poderá nascer do diálogo entre inimigos, como é retratado no filme, permitindo a descoberta do quanto em comum todos temos, do quanto podemos nos ajudar mutuamente. Como diz a bela música do filme, murmurada pelos soldados nas cenas finais, foram atos que tornaram todos como irmãos da mesma pátria:
Este não é um céu estrangeiro
Não vejo luz estrangeira
Mas longe estou
De uma terra em paz
Mas que pátria é esta cuja terra nunca está em paz? Na primeira leitura da liturgia do segundo domingo do Advento, do Livro de Isaías, o profeta convoca: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus”. Nossa pátria encontramos no deserto interior, na nossa solidão inevitável em que podemos descobrir o caminho que conduz à paz verdadeira porque um dia Ele percorreu esta estrada até nós, ensinando o caminho de volta para casa.
Na história e no filme, foi uma música quem chamou os soldados a desentortarem aquela guerra, ainda que por breve tempo. Então, que nesse Advento essa música do filme – chamada Hino das Fraternidades/Estou sonhando com minha casa – também possa fazer o mesmo por nós:
Eu ouço os pássaros da montanha
O som dos rios cantando
A música que costumo escutar
Ela flui através de mim agora
Tão clara e tão alta
Ficarei onde estou
E para sempre estou sonhando com minha casa
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