Foto: Fred Tanneau/AFP/Getty Images| Foto:

Anos atrás havia um aplicativo de celular chamado Secret, que permitia você publicar o que quisesse anonimamente. Imagine um Twitter ou Facebook só com posts, sem saber de quem. Era isso o Secret. À época escrevi um artigo para a Gazeta dizendo que isso incentivava a ousadia dos covardes, citando Drummond, pois o anonimato “combina o prazer da vilania com a virtude da discrição”. Na mesma época surgiu outro aplicativo, o Lulu, que permitia às mulheres darem notas e elogiar ou criticar homens. Ambos aplicativos tiveram uma série de problemas judiciais e foram encerrados algum tempo depois.

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Agora, outro aplicativo apareceu no mesmo “nicho”. O Sarahah foi criado por um saudita e diz servir ao propósito do seu nome, que em árabe significa “honestidade”. Assim o treco se anuncia: “Você está pronto para a honestidade? Receba críticas construtivas dos seus amigos e colegas, em anonimato total”. Ou seja, ao contrário do Secret, que dava pedras a anônimos, o Sarahah dá vidraça a quem queira levar pedradas ou afagos sem saber de quem. Como ninguém fica sabendo da mensagem, só você, o aplicativo tem mais chances de vingar. Afinal, entra quem quer, por sua conta e risco. Fiquei curioso e me inscrevi para ver no que dava.

Estou há uma semana por lá e recebi 40 mensagens até o momento: duas delas foram repetidas por mau funcionamento do aplicativo; oito foram elogios; três pedradas; cinco zoeiras; duas críticas construtivas (especialmente a que me avisou que pareço mais gordo do que sou na foto de perfil do Facebook); três da mesma pessoa falando de um terceiro; dois pedidos para que eu respondesse suas outras mensagens pelo Facebook; uma indicação de leitura; e 12 perguntas. Dessas perguntas, várias foram interessantes e me deixaram pensando, como esta: “você já sentiu o peso e a dor de ser tão amado?” Está aí algo que você não espera receber num brinquedo desses. Mas as que mais me chamaram a atenção foram as perguntas ou apelos de náufragos na vida, como esta mensagem:

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Como não associar isso com o ocorrido com a cantora Sinead O’Connor na semana passada? Não viu? Ela postou em seu perfil no Facebook um vídeo confessional dizendo ser portadora de três transtornos mentais, um deles sendo a bipolaridade, e reclamando também da solidão, dizendo: “Eu estou sozinha e não há ninguém em minha vida além do meu psiquiatra. O homem mais doce da Terra, que diz que eu sou heroína, e essa é a única coisa que me mantém viva no momento. E isso é meio patético”.

Acho que entendo o psiquiatra, como comentei no Facebook. Sinead é uma sobrevivente de si mesma, no fim das contas. Sofreu abuso na infância, já tentou suicídio, foi excomungada, assumiu ser homossexual, mas casou quatro vezes com homens, tendo quatro filhos de pais diferentes. O último casamento, em 2011, durou 16 dias. Ou seja, não é fácil ser Sinead O’Connor e, nessas condições, sobreviver é ato heroico mesmo. Também para quem convive com alguém nessa situação. Mas, como sobreviver não é viver, a solidão acaba sendo o salário da depressão controlada.

Sinead foi acudida por alguns anônimos que assistiram ao seu vídeo e ficaram preocupados. Foi internada e parece estar fora de perigo. Às vezes o anonimato não serve apenas de arma aos pusilânimes, mas de defesa dos fragilizados.

Não tenho como ajudar quem me enviou o apelo acima, por motivos óbvios, mas posso ao menos não deixá-lo falando sozinho, dando voz à sua dor e dizendo que lhe dei ouvidos, o que espero seja de algum consolo. Em verdade, posso fazer algo mais. Sei que solidão não tem cura, mas tem paliativos, como a (boa) poesia, especialmente lírica. E, já que citei Drummond, despeço-me com um seu poeminha de rara esperança:

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Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida