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Ele vinha descendo a ladeira da memória. Olhei de relance, o suficiente para averiguar se eu estava em risco. Não estava, não parecia. Enquanto meu cachorro cheirava o universo em forma de muro coberto de hera, eu me ensimesmava na oração do terço. Foi quando o sujeito nos abordou.
Era da nova safra de idosos, desses que calçam tênis de piá, vestem calça jeans, com a barra um tanto acima do calcanhar, e camisa social, com caneta e lapiseira guardadas com esmero militar no bolso do coração. Cheirava a alguma coisa doce, que pela idade dele, pela minha e pela leitura de contos de Dalton Trevisan, chamo de “água de colônia”, coisa que não sei o que é, nem sei se Dalton descreveu assim algum de seus personagens, sempre os mesmos, mas me pareceu ornar com a manhã de domingo mezzo cinzenta mezzo azulada de uma Curitiba aquietada, preguiçosa.
O interesse dele era todo pelo Luke (sim, Skywalker), de pêlo da cor da castidade e indiferente ao senhor que o tentava afagar, contando-me que tinha um cachorrinho igual. Já havia perdido as contas das Ave Marias mesmo, então decidi que daria uma esmola de atenção, cometendo a temeridade de me interessar pelo falecido. Em segundos estava vendo fotos e mais fotos no celular de um bichinho simpático, porém cansado, tristonho, como que a pedir licença para morrer. Viveu 17 anos, segundo o senhor, que não era senhorzinho, mas alto, com um bigode à la Coronel Aureliano Buendía.
Tenho pra mim que Dalton se vingou em seus personagens infelizes e amargos de todos os “bom dia” simpáticos que recebeu de curitibanos educados
Demos os bons dias, bom domingo e boa semana de praxe e ele se foi pelo caminho que eu também iria, mas que graças ao Luke seria no passo da contemplação, não da solidão. Fiquei a pensar em como o senhorzinho (agora já era assim na minha nostalgia) seria retratado por Dalton Trevisan. Sua figura não tinha nada que me parecesse combinar com o olhar vampiresco do famoso escritor, mas talvez por isso mesmo fosse o espécime perfeito para ser seu personagem. Tenho pra mim que Dalton se vingou em seus personagens infelizes e amargos de todos os “bom dia” simpáticos que recebeu de curitibanos educados.
Fiquei nublado. Tenho bem mais de Dalton em mim que do senhorzinho caminhando com a memória viva de seus amores. Eis que, na esquina adiante, o vejo conversando com outro sujeito, que também levava seu cão passear, também de pêlo cor da castidade, mas de raça diversa. Apurei o olhar e percebi que o senhorzinho mostrava no celular as fotos para o sujeito, que deve ser bem mais tratável do que eu porque ficaram bem mais tempo papeando.
Era a cor, portanto, sua desculpa para estabelecer contato humano. Quão pouco. Eu, nem isso, acho. Se sou quem pareço ser, daqui a uns anos estarei flanando também pelas ruas, como já faço de vez em quando, espero que sem canetas nos bolsos e com um belo e confortável par de tênis de piá, mas certamente não pararei ninguém para mostrar quão vivo estou. Estarei?
As necessidades feitas, tanto as fisiológicas do Luke como a espiritual minha, dedicando o terço ao senhorzinho, voltamos para casa. Achei por bem me tirar do macambúzio estado em que ia me enfiando lendo contos menos taciturnos e desesperançados. Reli Sorôco, sua mãe, sua filha, de Guimarães Rosa. Não sei você, mas Sorôco me soa como nome de mulher, mas é de homem na história, que é singela, com Sorôco entregando a mãe e filha, loucas, para serem levadas ao hospício. Na época, “hospício” era palavra liberada. Hoje, não sei qual usam, fica sendo aquela mesmo.
As doidas cantavam o tempo todo, irritantemente, todos os dias, todas as horas. Entende-se Sorôco ter cansado, ter desistido. Mas o fim do conto surpreende. Nem bem elas tinham se ido com o trem e o silêncio revelou o vazio, com Sorôco imediatamente começando a cantar, com as gentes que conheciam tão bem seu drama, sua tragédia, comovendo-se, passando a cantar também: “Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação. A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga”.
Funcionou. Era hora de sair para o almoço, que seria, como foi, em celebração pela minha vida, cujo aniversário foi dias antes. Não cabia usar tênis, mas fui de jeans e camisa social. No bolso do coração, ajeitei caneta, lapiseira e marca-texto. Penso seriamente em deixar o bigode crescer. Alguém sabe onde se compra água de colônia?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos