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Toda vez que se intensifica esta absurda insegurança jurídica em que vivemos, capitaneada pelos ministros do STF, volto à minha época de estudante da faculdade de Direito, em meados da década de 1990, quando toda essa confusão começava a ser gestada e semeada numa série de mudanças que aconteciam tanto no âmbito do pensamento jurídico como da produção legislativa.
A Constituição Federal era ainda uma infante à época e a legislação infraconstitucional passava por um consequente processo de atualização. Havia novidades, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ambos de 1990, mas também inúmeras alterações em várias leis já existentes, como as feitas no Código de Processo Civil por várias “pequenas” leis entre 1993 e 1995.
Os ministros do STF não só legislam sem terem sido eleitos para tanto, como no caso da criação sem lei do crime de homofobia, como abusam descaradamente do seu imenso poder
Entravam na moda as chamadas “cláusulas gerais” ou abertas. O que seriam? Em resumo, são normas concedendo ao juiz um maior grau de discricionariedade na sua interpretação e aplicação. Isso se consolidou de vez em 2002, com o novo Código Civil trazendo cláusulas abertas como, por exemplo, a definição do que seria uma “boa-fé objetiva” ou a “função social da propriedade”. O código não dizia o que seriam, dando apenas indicativos genéricos, quando muito, e deixando, na prática, para o juiz decidir no caso concreto.
A principal vantagem na adoção dessas cláusulas gerais está em diminuir a distância entre o texto da lei e a realidade social a que se aplica. Quando uma lei é muito “fechada”, dando pouca margem para interpretação, com o tempo ela tende a ficar obsoleta pelas mudanças culturais e sociais. Contudo, como segue sendo válida, gera-se um descompasso entre ela e a realidade social que só aumenta com o processo de alteração legislativa, que é sempre moroso. Um bom exemplo disso é o citado novo Código Civil, que começou a ser elaborado em 1969 e somente foi aprovado em 2001.
Ou seja, em um contexto de mutações sociais consideráveis e aceleradas, como vem sendo desde o século 19 e mais ainda na segunda metade do século 20, o uso desse instrumento jurídico serve para dar maior, digamos, durabilidade às leis, diminuindo a necessidade de sua alteração constante ao permitir aos juízes adaptarem-nas à realidade concreta.
Tudo muito lindo e maravilhoso, porém, entretanto, contudo e todavia, a consequência óbvia é um aumento considerável do poder dos juízes, especialmente dos ministros da Suprema Corte que ganham margem para agir como verdadeiros legisladores, se quiserem.
Aos pobres mortais, sem qualquer poder diante desses encastelados “servidores públicos”, resta suportar o sentimento do absurdo diante disso tudo que já corroeu toda e qualquer confiança no Poder Judiciário
Eis a época atual em que os ministros não só legislam sem terem sido eleitos para tanto, como no caso da criação sem lei do crime de homofobia, como abusam descaradamente do seu imenso poder, como deixa muito evidente o bizarro e inaceitável “inquérito do fim do mundo” em que se colocaram como vítimas, investigadores, acusadores e juízes.
É também o que explica que o ministro Luís Roberto Barroso não veja nada de errado em se meter na discussão sobre a PEC do voto impresso, agindo como um lobista político e não como um juiz que deve se manter imparcial e não comentar casos que possa vir a julgar. O mínimo que se espera, caso a questão seja judicializada, é que se declare suspeito para julgá-la. Mas esperar o mínimo é demais nos tempos que correm e com os ministros que temos. Aos pobres mortais, sem qualquer poder diante desses encastelados “servidores públicos”, resta suportar o sentimento do absurdo diante disso tudo que já corroeu toda e qualquer confiança não apenas no Poder Judiciário, mas também nas demais instituições da República e seus agentes públicos, que ou estão impotentes ou são coniventes. Seja qual for o caso, o resultado não tem como ser algo bom. E não parece haver mais corda para ser esticada.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos