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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Recordação

“O sertão é uma espera enorme”

(Foto: Francisco Escorsim)

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Voltei para o Grande Sertão: Veredas. O parque, o livro, o sertão... Ah, o sertão... Um ano atrás escrevi sobre minha primeira vez por lá. Confesso que temia perder um pouco do encanto, um alumbramento menor, talvez. Mas foi o avesso, o sertão estava dentro de mim mesmo, à espera do reencontro.

“O sertão é uma espera enorme” é uma das diversas frases do livro definindo o lugar. E é uma espera imensa mesmo. Para chegar, por exemplo, saindo do aeroporto de Brasília, leva de 6 a 7 horas de estrada, com a paisagem urbana desaparecendo devagar até a do sertão se revelar, alargando os minutos pelas estradas de terra que obrigam o desacelerar da vida.

Ao recém-chegado, que nada entende de natureza, o sertão não parece coisa boa, não. Ao menos na época da seca, como agora. Está há mais de 100 dias à espera de chuva por lá, com o amarelo palha da secura dominando o olhar desafinado de quem não sabe discernir quase nada, vendo em tudo apenas mato. Mato seco, quebrado, abandonado.

A beleza do sertão não está no que se enxerga, mas na vivência, no estar sendo lá. Só se apresenta aos olhos depois que o coração, convidado à espera enorme, abre a janela do olhar, donde o sertão daí transborda

Mas quando afinamos o olhar pela vista de quem entende, a vegetação se revela mais viva do que muita alma por aí. A beleza do sertão está no “sem lugar”, outra das definições dadas por Guimarães Rosa em sua obra-prima. Não está numa espécie ou outra de árvore, de flor, de bicho, tampouco no conjunto integrado dos existentes ali, cobertos por um céu espetaculoso, azul demais da conta.

Não... A beleza do sertão não está no que se enxerga, mas na vivência, no estar sendo lá. Só se apresenta aos olhos depois que o coração, convidado à espera enorme, abre a janela do olhar, donde o sertão daí transborda. Esperar por tudo... Pela chuva, pelo sol, pela lua, pela comida, pelo avistar de um bicho lindo, pelo encontro da flor cigana vermelha se destacando na terra, caliandra o nome, ou flor do diabo, a depender do coração do vivente observante.

Esperar como as árvores, do que mais gosto por lá. Ano passado me impressionei com o fato de serem, na maioria, muito pequenas, mas com raízes profundas, de 3 a 5 vezes o tamanho do lado de fora da terra. Sem elas, não haveria como obter água para suportar o período de estiagem. Mas desta vez o que me interessou foram os galhos desfolhados, retorcidos, muito tortos.

Muito disso decorre da recorrência das queimadas na região. Com o fogo, folhas e gemas (tecidos de crescimento das plantas) sofrem necrose e morrem. Mas as árvores resistem, com gemas internas brotando em outras partes do galho, daí quebrando a linearidade do crescimento, transformando a árvore num todo torto de galhos retorcidos. Mas uma coisa é reta: buscam sempre o alto, o céu, o sol.

Resiliência, o coração de toda espera, é o que há no sem lugar do sertão, que está por toda parte, até dentro da gente. Se na primeira vez me deslumbrei, nessa segunda me aquietei. Não sei bem explicar, mas lá encontrei à minha espera tudo que já perdi, tudo que deu errado. Não um encontro de “final feliz”, aqueles de filme, como se tudo fosse restaurado, corrigido. Não, foi encontro da vida com a vida mesmo, com o que ficou pelo caminho, guardado na memória, como gema interna no coração.

Resiliência, o coração de toda espera, é o que há no sem lugar do sertão, que está por toda parte, até dentro da gente

Uma delas é meu compadre, falecido em 2019. Desde que ele se foi, criei uma playlist para manter ao menos algo do que tínhamos. Trocávamos muitas músicas, continuei fazendo isso, acrescentando as novas que foram surgindo desde então, outras de antes descobertas por depois. Nas esperas todas por lá, nas idas e vindas de passeios e caminhadas, especialmente na volta preguiçosa para Brasília, era esta playlist que eu escutava.

Uma das músicas, Tocando em Frente, na versão de Renato Teixeira acompanhado de orquestra, reprisei várias vezes. Quanto mais velho fico, mais a entendo, acho. O andar devagar porque já tive pressa ainda estou à espera, mas o tocar os dias como um velho boiadeiro tocando a boiada, ah, aí já venho sendo obrigado a fazer há algum tempo. E cada vez mais, levando a certeza de que muito pouco eu sei. Ou nada sei. Mas desconfio de muita coisa, não é, Alceuzinho?

E nessa espera enorme, espera pelo Céu, encontro nos galhos retorcidos de saudade no mais fundo da alma a água que faz viver, resistir, dela brotando no olhar lagrimazinhas de gratidão com que reguei um pouco daquele chão. Então, ouvi no vento o dizer de Riobaldo, como se estivesse ao lado, como se estivesse dentro: “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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