Antonio Costa/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Uma característica bem pronunciada da chamada “nova direita” é sua juventude, algo comprovado pelas pesquisas que saem por aí sobre preferências ideológicas, políticas etc. A última delas divulgada, feita pelo Instituto Paraná Pesquisas a pedido desta Gazeta do Povo, mostrou isso. Conferindo os recortes por idade, constata-se que dos 16 aos 24 anos a maioria é de direita, mantendo-se essa tendência até os 34, pelo menos; daí, até os 45, ficando mais ao centro, passando para a esquerda dos 45 aos 60 e, depois, dos 60 em diante vencendo a desilusão, já não existindo preferência.

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A “nova direita”, portanto, é realmente jovem. Isso explica em parte o sentimento de muitos dentro dela se sentirem ou se pretenderem inaugurais. Porque outra característica bem pronunciada da maioria desses jovens é a inexistência de maiores laços com seus antepassados brasileiros, com a cultura brasileira propriamente dita. Ou seja, salvo exceções, não estamos diante de uma retomada de alguma tradição brasileira ou algo assim. Basta reparar nas referências mais comuns presentes nos seus discursos e conversas internas: economistas liberais austríacos, conservadores anglo-americanos e libertários norte-americanos. Ainda que se veja aqui e acolá lembranças de um Paulo Francis, um Roberto Campos, um Joaquim Nabuco, um Nelson Rodrigues, um Gilberto Freyre, para ficar nos mais óbvios, não é preciso muito para se perceber que nem de longe esses têm o mesmo peso e influência.

Isso pode e deve ser objeto de crítica, mas a razão para esse descomprometimento me parece ter mais a ver com o fato de essa juventude ter nascido numa cultura hegemônica de esquerda gramsciana, como tratei na coluna anterior sobre a origem dessa “nova direita”. Tentarei detalhar um pouco mais isso hoje. O fato é que as gerações nascidas a partir (pelo menos) da segunda metade dos anos 70 em diante foram formadas num contexto cultural divorciado do que foi a cultura brasileira anterior. Esse divórcio já se fazia notar na década de 70, sentido como uma debacle cultural assustadora, como percebeu Osman Lins – alguém sabe quem foi? Pois é… –, que num artigo contundente chamado “Reflexões sob um Quadro-Negro” revelou a realidade do ensino brasileiro à época, com alunos pessimamente formados, incapazes de dominar minimamente a própria língua. Osman, além de grande escritor, era professor universitário, e falava por experiência própria também.

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Para termos uma noção mais precisa do grau dessa degradação, vale citar o resultado de uma pesquisa feita por ele com seus alunos do curso de Letras. As perguntas eram bem simples, como “Cite cinco ficcionistas contemporâneos” e “Cite cinco grandes nomes (não brasileiros) da literatura universal”. Mais da metade dos alunos não foi capaz de citar um único ficcionista brasileiro e apenas 20 alunos de um total de 90 conseguiram citar cinco grandes nomes da literatura universal, sendo que 17 não foram capazes de citar ao menos um. Outra pergunta banal para alunos de curso de Letras, como “Qual o ano da Semana da Arte Moderna?”, teve resultado alarmante: 43 ignoravam a resposta.

O artigo teve alguma ressonância, sendo tratado por outros jornais, inclusive por editorial do Jornal do Brasil e página inteira no Pasquim, além de ter sido tema em mais de uma aula inaugural em universidades brasileiras. Mas nada mudou – pelo contrário, só piorou. Em consequência, Osman desistiu da carreira de professor ao perceber que a decadência evidente do ensino brasileiro não era aceita pela maioria de seus pares e administradores das coisas da educação, preferindo antes fingirem que os problemas não existiam ou não eram tão graves. Esse artigo e outros de sua autoria, igualmente importantes, formam um documento histórico precioso da degradação cultural brasileira. Quem quiser lê-los acho que consegue encontrar em sebo o livro Do Ideal e da Glória – Problemas Inculturais Brasileiros, onde foram reunidos e publicados pela Summus Editorial em 1977, sem reedição até hoje.

Enfim, se a situação já estava assim na década de 70, imagine agora em 2018, depois de décadas em que a única força cultural relevante em atividade no país só visou uma única coisa: construir a hegemonia de sua visão de mundo, formando agentes de propagação dessa visão, de preferência inconscientes e por isso mesmo sinceros, e por fim consolidando um novo “senso comum” a sustentar uma tábua de valores e consequente projeto de poder. Refiro-me ao gramscismo que se alastrou como praga a partir dos anos 70, tornou-se a essência da esquerda brasileira e está no DNA do Partido dos Trabalhadores. A obra fundamental no Brasil para se conhecer o que seja, suas causas remotas e distantes, e a própria historia da sua concretização é o livro A Nova Era e a Revolução Cultural, de Olavo de Carvalho, já sugerido no artigo anterior.

Aqui me concentro no resultado concreto desse “senso comum”, que para Gramsci seria “um aglomerado de hábitos e expectativas, inconscientes ou semiconscientes na maior parte, que governam o dia a dia das pessoas”, conforme explicado por Olavo de Carvalho no livro citado. Ou seja, a ação gramsciana não se deu no plano da razão e do debate cultural ou político, mas agiu sobre a imaginação e o sentimento, moldando uma visão de mundo que não foi se impondo à razão convencida de sua verdade ou superioridade, mas pela influência psicológica, ou seja, pela sedução, pelo aliciamento, por instigação. Quando a hegemonia foi alcançada, consolidando os critérios e limites do pensável para um indivíduo e do compreensível para a sociedade, entrou em cena – o que se poderia datar a partir da década de 90 – uma tábua de valores morais a orientar a conduta ética.

Daí porque a esquerda política organizada tomou para si a bandeira da ética na política, derrubando Collor e outros tantos, posando de honesta e “diferente”. A esquerda, historicamente, nunca se prendeu a argumentos de ordem ética e moral, mais acusando a ética e moral de serem as camisas-de-força da burguesia a controlar o proletariado. Se, “de repente”, aparecia da noite para o dia como paladina da moral, é porque já estava madura o suficiente no “senso comum” a ideia de que a esquerda era ética e moral e a direita, não. Essa hegemonia perdurou até o colapso recente do petismo no governo, o que obrigou a esquerda organizada, para se defender, a jogar fora toda moral e ética. Com isso, o critério supremo da tábua moral e ética gramsciana foi revelado: a esquerda, seja lá o que faça, paira acima do bem e do mal, da verdade e da mentira. Ou seja, não há crime pior que não ser de esquerda e/ou prejudicá-la.

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Esse critério moral que era implícito ficou escancarado na reação de centenas de esquerdistas diante da pilhagem do Estado feita pelos petistas no poder. A desfaçatez e cinismo com que muitos negaram e ainda negam a realidade mais do que patente escancarada pela Lava Jato, tratando por criminosos quem os investiga; e o modo como se colocam numa pretensa posição de superioridade intelectual, criticando quem bateu panelas como “massa de manobra”, provaram de modo cabal a verdadeira moral e ética com que se conduzem na vida: não interessa o ato praticado, interessa quem o praticou. Se é corrupção, roubo, indecência, homicídio, qualquer crime, não interessa, tem de ver quem fez antes. Se é “dos nossos”, OK, paciência, “foi mal aí”; mas, se não for, então é corrupção mesmo, roubo, indecência, homicídio, qualquer crime.

Centenas de pessoas, ainda que desconfortáveis, agiram assim, ainda que optando pelo silêncio ou mutismo cúmplice, seguindo à letra essa tábua moral gramsciana por impossibilidade de não segui-la. O que o descalabro petista nos proporcionou, portanto, foi visualizar na realidade concreta o limite do imaginável e pensável para quem foi inteiramente formatado por essa visão de mundo gramsciana em que certo e errado é definido pelo lado em que você está e mais nada. É uma moralidade de torcida organizada, que protege os crimes cometidos pelos seus, mas acusa e condena crimes idênticos cometidos pela torcida adversária. Por isso mesmo agiram “eticamente” contra Collor e qualquer corrupto que não seja de esquerda, mas, quando se tratou de atos ainda piores dos petistas, aí não, aí não foi bem assim etc. Quantos esquerdistas não fizeram e continuam a fazer a defesa do petismo apelando para as “conquistas” supostamente feitas para os pobres? É o famoso “rouba, mas faz” que eles tanto diziam condenar num Paulo Maluf, e agora tentam convencer que “são todos iguais, então, paciência”. Mas uma vez é escancarado um código moral e ético estúpido, tosco, inviável, imoral em si, que para ser seguido exige mais do que a anestesia da consciência moral, mas sua esterilização. É uma máquina de criação de sociopatas.

O que isso tem a ver com a “nova direita”? Ora, por nascer nesse mesmo contexto cultural em que o código supremo é este em que o mais importante é estar do lado certo, boa parte dessa “nova direita” apenas trocou de lado, de time, de torcida organizada, mas continua se comportando da mesma forma, de acordo com a mesmíssima tábua moral, apenas deslocando o “bem” e o “certo” para a direita. Nem toda “nova direita” é assim, mas a que mais aparece é feita de militância, querendo transformar o Brasil sem compreendê-lo antes, sem compreender nem sequer a si. É uma militância barulhenta, adolescente, encrenqueira e que, ao menor sinal de infidelidade dos seus, cospe fora etiquetando de “comunistas”, “socialistas fabianos” etc. Por isso mesmo também é uma militância ansiosa, impaciente, focada na conquista do poder antes de tudo, atropelando etapas e cuja atuação cultural só é feita se se for para instrumentalizá-la para fins político-ideológicos que, no momento, não são outros senão desmascarar a esquerda e impedi-la de agir. Por exemplo, quantos realmente consideraram moralmente repulsivas as obras de arte que foram alvo de polêmica no ano passado? Não teria havido repúdio muito mais porque isso atingiria “a esquerda progressista”?

Essa militância histérica não tem maiores referências culturais senão as “clássicas estrangeiras”, quase sempre lidas de orelhada, desconhecendo quase tudo da cultura brasileira e incapazes de compreender, muitas vezes até de acompanhar, quem optou por outro rumo, aquele que alguns despertos de fato dessa bolha gramsciana perceberam ser o único realmente possível de dar frutos: padecer durante muito tempo a cruz da incultura brutal, da péssima formação pessoal, da sensação de impotência quase completa para mudar o que quer que seja e da impaciência para perseverar consertando tantos problemas educacionais e pessoais. Isso leva tempo e é impossível de ser feito por via política. Se for feito, será pela aquisição real de cultura – não de eruditismo estéril –, ou seja, pela produção e consumo de livros, filmes, peças de teatro, novelas, programas de tevê, de rádio, artigos de jornal, diálogo intelectual etc.

É por isso que a maioria dos livros publicados no contexto do surgimento dessa “nova direita” vem desse último grupo, que padece dessa tensão entre o combate cultural mais do que urgente e a restauração cultural mais do que necessária. O risco maior dos livros de combate cultural – e resenharei vários aqui – é incorrer nessa militância pura e simples, o que é suicídio cultural, e o tempo haverá de apagar eventual relevância momentânea. Já os restauradores têm uma responsabilidade muito maior, porque assumiram o dever de serem a ligação com a cultura brasileira do passado e, portanto, têm uma missão educacional com essa mesma juventude militante que parece não querer nem escutá-los. Não importa, é seu dever tentar. Por isso seus riscos são os mesmos do intelectual brasileiro de todas as épocas: a leviandade no trato com as coisas do espírito, o desejo de desistência por evasão, a avareza com a própria inteligência, a satisfação em ser pequeno para parecer humilde e não gerar inveja, a dissimulação covarde, a inveja espiritual que nos leva a diminuir sempre que possível quem foi ou é grande.

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