Cena do seriado ‘Z O Começo de Tudo’, que retrata o relacionamento entre Zelda e Scott Fitzgerald| Foto: Divulgação
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Preencher o vazio existencial por si mesmo não é a mesma coisa que dar sentido à vida, ainda que assim pareça num primeiro momento. É como alegria de bêbado. Sempre vem a ressaca depois. E se tudo que restar para preencher esse vazio for algo assim, o próprio hábito disso fará com que aquela alegria se torne cada vez mais difícil de ser conquistada, exigindo litros e mais litros de álcool ou outra substância entorpecente qualquer para se conseguir o mesmo efeito.

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Não por acaso a bebedeira foi uma das marcas daquela “geração perdida” dos anos 1920, expressão cunhada por Gertrud Stein, mas imortalizada justamente por Hemingway, que em Paris É Uma Festa nos revelou o quanto uma coisa estava associada à outra, contextualizando a expressão criada por sua então amiga (depois eles romperiam a amizade) e personagem central da época: “Todos vocês, essa rapaziada que serviu na guerra. Vocês são uma geração perdida. Vocês não tem respeito por coisa alguma. Vocês bebem até morrer.”

Ninguém retratou melhor essa realidade do que Scott Fitzgerald, ícone daquela época também chamada de “era do Jazz” e o amigo de Hemingway que mereceu maior destaque no livro. Em O Grande Gatsby, sua obra mais famosa, vemos o quanto a aparente alegria das festas nababescas não preenchia de fato o vazio da vida do protagonista que transformou uma paixão do passado numa obsessão que o levou à tragédia.

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Fitzgerald foi um autor que romanceou muito de sua própria vida, em especial seu relacionamento com Zelda que vem sendo retratado numa boa série produzida pela Amazon Prime, chamada Z: O Começo de Tudo, em que podemos ver a sede de vida de ambos, a busca por sentido, mas que por não encontrar foco nem orientação, desaguou numa vida desregrada de noitadas incessantes que culminaram, anos depois, na esquizofrenia de Zelda e no fracasso existencial (não como escritor) de Scott, que em um de seus cadernos escreveu o que seria (e foi) seu epitáfio: “Fiquei bêbado durante anos e morri.”

Por esses e outros casos semelhantes que a expressão de Gertud Stein, “geração perdida”, tornou-se tão famosa e precisa. O “perdida” aí significa menos que seria uma geração desperdiçada (não foi, embora muitos tenham desperdiçado suas vidas) e mais que estavam desorientados, sem saber o que fazer e para onde ir, daí o escapismo confessado involuntariamente por Hemingway no seu livro: "Havia tantas coisas para compreender naqueles dias que fiquei satisfeito quando mudamos de assunto."

Quando olhamos em retrospectiva para esses loucos anos 20, contextualizados como um período de “férias” entre as duas grandes guerras mundiais, compreendemos porque da preferência por “mudar de assunto”. Em Paris É Uma Festa, Hemingway constrói uma metáfora daquela época como um intervalo entre dois invernos. O primeiro, no início do livro, como o inverno do qual se saía daquela “época de mau tempo”, com “cheiro de corpos sujos” e o “azedo da embriaguez”, destacando um dos cafés como sendo uma cloaca e descrevendo como as fossas eram esvaziadas à noite em seu bairro. Ao fim, um inverno que parecia muito melhor, de diversão nas montanhas nevadas da Áustria, mas que é retratado com avalanches mortíferas: “A pior lembrança que guardo daquele inverno catastrófico é a de um homem sendo desenterrado.”

Mas ninguém queria, naquele momento, desenterrar a morte. Ao menos não durante a “festa”, para não atrapalhá-la, como consta de outra passagem da obra ao falar de Gertrud Stein: “Miss Stein queria conhecer o lado alegre do que se passava pelo mundo; nunca o lado real, nunca o lado mau. Eu era jovem e nada sombrio e, como sempre havia coisas estranhas e cômicas acontecendo nos piores momentos, Miss Stein gostava de ouvi-las. Das outras coisas eu não falava, preferia escrever sobre elas.”

Coisas sobre as quais continuou escrevendo por toda a vida, inclusive em Paris é uma Festa, como se vê, deixando para o leitor atento a “chave” para abrir a porta de acesso a esse “lado real” daqueles loucos anos 20: “Sempre se pode omitir qualquer coisa de um conto, desde que se saiba por que se omitiu e a parte omitida reforce a narrativa, fazendo com que os leitores sintam alguma coisa além daquilo que entenderam.” E o que Hemingway omitiu, mas que o leitor sente na leitura da obra?

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O medo. O temor de que a festa não durasse, que a primavera fosse falsa, que tudo fosse apenas um longo inverno e aquele período um intervalo na demolição generalizada da existência humana que a primeira guerra havia iniciado e que Hemingway sabia, ao escrever o livro décadas depois, que tinha sido apenas o começo da tragédia, não seu fim. Quando percebemos esse medo na obra, passagens inteiras se transfiguram ganhando muito mais sentido e significado, como esta, das minhas preferidas:

“Com tantas árvores na cidade podia-se ver a primavera chegando dia a dia, até que uma noite de vento quente a traria de repente na manhã seguinte. Pesadas chuvas frias poderiam retardá-la às vezes, e temíamos que nunca mais chegasse, fazendo-nos perder, assim, uma estação em nossa vida. Esse era o único tempo realmente triste em Paris porque era fora do natural. A gente já espera ficar triste no outono. Uma parte da gente morre a cada ano, quando as folhas caem das árvores e seus galhos ficam nus, batidos pelo vento e pela luz fria, invernal. Mas sabíamos que haveria sempre outra primavera, assim como sabíamos que o rio fluiria de novo depois de ter estado congelado. Quando as chuvas frias continuavam durante longo tempo e acabavam matando a primavera, era como se um jovem tivesse morrido à toa. Naqueles dias, porém, a primavera sempre triunfava, mas dava-nos um frio na espinha pensar que faltara pouco para que ela tivesse falhado.”

Esse “frio na espinha” estamos a sentir hoje com essa pandemia que nos assola, ninguém sabe quando acabará e que por isso mesmo vem sendo também como uma picareta arrebentando a casca (o medo) do ovo da serpente gestada em nosso vazio existencial, no sentido ensinado por Victor Frankl, que dizia que esse vazio nos faz conduzir a vida de uma de duas maneiras: ou imitando o que os outros estão fazendo, que ele chama de conformismo; ou fazendo o que os outros querem que você faça, que ele chama de totalitarismo. Eis a serpente.

Para não me alongar (mais), continuo na semana que vem o que comecei na anterior, falando mais sobre esse medo e serpente, ambos muito bem mostrados no filme de Bergman, O Ovo da Serpente, que também retrata esses “loucos anos 1920”, mas na Alemanha, com a primeira cena já bastando para visualizarmos o drama: uma casa que, no andar de baixo, mostra um jantar festivo, enquanto no andar de cima jaz um suicida bem sucedido. A propósito, Hemingway terminou seu Paris É Uma Festa com a separação de sua primeira esposa, mas sem contar que, logo depois, como revelou em carta a Fitzgerald: “Segurei-me para não girar o botão do gás e rasgar os pulsos com a lâmina de barbear cega.”