A expressão “ovo da serpente” foi cunhada por Shakespeare, na peça Julio Cesar. Faz parte de uma das falas de Brutus, no início do segundo ato, ao decidir matar Julio Cesar antes que este destruísse a república romana, sendo coroado imperador, como temia fosse acontecer muito em breve: “Temos de vê-lo um ovo de serpente / Que chocado, segundo o seu destino / Virá a ser maligno e deve então / Ser morto ainda na casca.”
Esta é uma das peças históricas do inigualável bardo inglês, daí porque possuir um mínimo de conhecimento histórico do assassinato de Julio Cesar por conspiradores em 44 a.C. ajude a compreendê-la melhor. Mas caso você nada saiba sobre isso, leitor interessado apenas no hoje, não se preocupe, pode ler a peça sem tanto prejuízo, vivenciando-a como se fosse uma das gentes do povo que é dos principais personagens da obra e que tampouco entendia direito o que estava acontecendo nas altas esferas do poder.
A peça inaugura com os populares, representados por um carpinteiro e um sapateiro, sendo expulsos por tribunos das ruas onde aguardavam o retorno triunfal de Cesar. Sinal de ruptura política percebida como muito mais do que isso em vários momentos da peça, como quando os senadores Casca e Cícero, no fim do primeiro ato, conversam sobre a estranhezas daqueles dias, como um escravo conhecido cuja mão esquerda ardia em chamas, mas não se queimou; como as mulheres que diziam ver homens queimando pelas ruas; como um leão passando mal-humorado pelo capitólio e uma coruja piando ao meio-dia. Como disse Casca: “Ninguém diga / Sobre a combinação de tais prodígios / “Tudo isso se explica, tudo é natural”, / Pois creio que são coisas portentosas / Pra região onde elas aparecem.”
O medo de que tudo isso fosse sinal de desgraça se consumou quando do assassinato de Cesar, anunciado de púlpitos e proclamado pelas ruas, fazendo com que o povo desesperasse, como disse Trebonius: “Homems, mulheres e crianças gritam, / Fugindo ao fim do mundo.” E aí chegamos à cena decisiva, quando a plebe exigiu uma satisfação para o crime cometido, escutando primeiro o discurso de Brutus, explicando por que fez o que fez, e concordando com ele para, em seguida, mudar completamente de opinião, comprando o discurso de Marco Antônio, fiel aliado de Cesar, refutando as razões de Brutus. A partir dali, não houve mais espaço para nada, salvo a vingança que se espalhou como rastilho de pólvora incendiando uma nova guerra civil.
Mas não sigamos com a plebe no ímpeto assassino e fiquemos um tempo a mais nesse espaço, nesse intervalo antes do convencimento. Marco Antônio tinha razão? Ou Brutus? Apenas com o que a peça fornece, não há como ter certeza. Temos apenas retórica. Brutus falou da ambição de Cesar, mas não arrolou fatos a embasá-lo. Seu trunfo era sua credibilidade, sua nobreza, ou seja, se chegou nessa conclusão de que era preciso matar Cesar, então era porque não haveria outra saída. Marco Antônio, bon vivant que de bobo não tinha nada, não questionou a nobreza de Brutus, mas destacou justamente a falta de fatos, citando alguns que indicariam o contrário daquela ambição e colocando a credibilidade do adversário em xeque. Retoricamente, Marco Antônio se saiu muito melhor e Shakespeare deixa isso muito claro ao fazer o discurso de Brutus não sair em versos, mas em ritmo de prosa, destoando de toda a peça. Mas vencer um debate não é o mesmo que ter a verdade ao seu lado.
Qual a verdade? Toda a peça é “amarrada” justamente pela impossibilidade de afirmá-la. Tudo são sinais, indícios, que precisam ser interpretados. Naquela cena citada acima em que Casca citou os prodígios nada naturais, Cícero respondeu: “Os tempos, na verdade, ‘stão estranhos; / Mas a mente dos homens vê as coisas, / Quando quer, muito longe do que são.” E é disso que se trata na peça, da forma como os personagens vêem as coisas, não como elas são. Brutus suspeitava de Cesar, mas só se convenceu a matá-lo pela sedução de Cassius, líder dos conspiradores. Cesar suspeitava da conspiração, mas foi convencido a se expor pela interpretação favorável de um sonho que um dos conspiradores fez e lhe trouxe a falsa segurança. Cassius, por sua vez, quando da batalha final, matou-se por interpretar errado o que via à distância, acreditando que tudo estava perdido quando ainda não estava.
Voltemos ao ovo da serpente. Brutus a matou ainda na casca? É aqui que gostaria de chegar. Quem aí não tem o medo ou a suspeita de Brutus de que a tirania nos espreita hoje também? E tanto faz quem você ache que a instalará, se Bolsonaro, se o STF, se o establishment, se os militares, se a China, se o Trump, se a OMS, se o Foro de São Paulo, se o fascistas, os comunistas, os antifas, os tios do zap-zap, enfim. Se algo nos une é o temor e a forte suspeita de que estamos a dois passos da tirania. Achamos que somos todos Brutus, transbordando de boas intenções e convictos das más alheias, cada vez mais dispostos a fazer ou aceitar que façam algo para impedir que o mal vença, até matar, se inevitável, crentes, como disse Cassius depois de matar Cesar, que a história: “Há de chamar a nós, este grupo / De homens que à pátria deram liberdade.” Mas se você considerar que a república romana foi pro saco anos depois da morte de Julio Cesar, transformando-se em império, a serpente não só permaneceu viva como Brutus ajudou a chocar o ovo.
E agora, José? Não estaríamos nós a chocar o ovo da serpente convictos de que precisamos matá-la na casca? Sim, porque quando a casca quebrar descobriremos que a serpente, em verdade, somos todos nós. Na peça, a plebe se torna a serpente, não mais querendo ser convencida ou esclarecida de nada, tornando-se surda à voz da razão e do bom senso, a tudo destruindo pela frente. Por exemplo, numa das cenas icônicas da peça está a morte do poeta Cinna, confundido pela massa com um dos conspiradores por ter o mesmo nome. Quando o medo dá lugar à raiva, a serpente é parida incendiada em ódio que ninguém mais controla. Como disse Marco Antônio: “Agora é só soltar. E que a maldade / Que tomou vida, vá pr’onde quiser.” Alguém aí pensando no quebra-quebra das manifestações ocorridas nesta última semana? E no que pode vir a acontecer nas próximas, especificamente quando os prós cruzarem com os contra? Tanto faz pró ou contra o que for.
Na semana passada terminei com uma pergunta: como não se transformar em monstro? Como, enfim, não deixar que a serpente que vem sendo gestada dentro de cada um seja liberada em morticínio e guerra civil que acabará por justificar a tirania futura como a ordem que todo caos convoca? Primeiro, tomando consciência disso, o que significa mirar-se no espelho para enxergar a serpente que há em si, não apenas nos outros a quem com tanta convicção acusamos.
Para tanto é que nos serve a arte, como essas obras que venho comentando por aqui com este intuito de fornecer esse espelho da nossa alma. Usando as palavras de Cassius: “Prepara-se, bom Brutus, para ouvir; / E já que não se pode ver senão / Por um reflexo, eu - o seu espelho - / Modestamente vou apresentar-lhe / O que você ignora de si mesmo.” E o que ignoramos de nós mesmos, se não conhecemos antes da serpente ser parida, conheceremos depois quando vermos o que nos tornarmos, do que formos capazes de torcer, aceitar ou fazer com nossas próprias mãos. Restará, então, o espelho a nos mostrar banhados com o sangue de um Julio Cesar qualquer estupefato a dizer: até tu, Brutus?
Nada melhor, agora, do que encararmos uma das distopias literárias que melhor retrataram o totalitarismo, não como um sistema estatal de controle que se impõe pelo Estado, de fora para dentro, mas como algo nascido e quisto pela própria sociedade, de dentro para fora, o seu ovo. É o que veremos na semana que vem, comentando o livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e suas duas adaptações cinematográficas, uma de 1966, escrita e dirigida por Truffaut, e outra mais recente, de 2018, produzida pela HBO. Mas talvez você não tenha mais paciência para nada disso, não tem “cabeça” nem “tempo” para essas coisas, não com “tudo o que está acontecendo”. Pois saiba que você também está bem retratado em Julio Cesar, na cena em que Brutus e Cassius estão brigando no acampamento dos soldados antes de uma batalha e de repente um poeta apareceu ali do nada, dizendo: “Generais, que vergonha! O que desejam? / Têm o dever de amar-se como amigos. / Eu já vivi bem mais que um e outro…” Escutou em resposta de Brutus: “Se fala na hora certa, eu dou ouvidos; / Mas que fazer, na guerra, com idiotas? / Sujeito à toa, saia!” Espero estar errado, leitor angustiado, mas creio que a hora certa de darmos ouvidos é agora.