Nesta semana a HBO tirou de seu serviço de streaming o clássico filme E O Vento Levou…, sob a justificativa de que: "Estas representações racistas estavam erradas na época e estão erradas hoje, e sentimos que manter este título disponível sem uma explicação e uma denúncia dessas representações seria irresponsável". Por causa da mesma razão racial, o seriado de sucesso Cops, no ar há 31 anos e com a 33ª temporada gravada que estreiaria na semana que vem foi cancelada pela Paramount Netwok.
Se quiser saber quais serão os próximos capítulos desta distopia totalitária que já estamos a viver basta ler, enquanto permitem, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Na obra, a serpente saiu do ovo exatamente assim, como explicou Beatty, um dos personagens centrais: “Você precisa entender que nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que nossas minorias sejam transtornadas e agitadas. (...) Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabana do Pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro.”
Escrito originalmente em 1953, Bradbury escreveu uma coda em 1979 que passou a finalizar a obra, na qual escreveu: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. (...) Beatty, o capitão dos bombeiros em meu romance Fahrenheit 451, explicou como os livros foram queimados primeiro pelas minorias, cada um rasgando uma página ou parágrafo desse livro e depois daquele, até que chegou o dia em que os livros estavam vazios e as mentes caladas e as bibliotecas para sempre fechadas.”
A serpente chocada pela sociedade sempre cresce se agigantando, envolvendo a todos no seu abraço mortal de uma estrutura estatal totalitária justificada para garantir que a “nova ordem” não seja incomodada. É o reino da distopia, da inversão completa da realidade. Em 1984, de Orwell, temos a novilingua, um idioma criado para controlar não só o que se pode dizer, mas também o que se pode pensar. Em Fahrenheit 451, essa inversão está em símbolos de significados consolidados no imaginário que são virados do avesso. O cachorro, símbolo de fidelidade e amizade, passa a significar a desconfiança e inimizade. Os bombeiros não apagam incêndios e salvam pessoas, mas são os incendiários a matar quem ouse manter livros em casa.
O fogo é o símbolo unificador de todos os significados, sendo que o título do livro é sua temperatura que seria ideal para a queima dos livros. Por isso, é por sua intensidade que os significados se manifestam. O fogo carrega, no início, o significado do título, de pretensa purificação da sociedade mascarando seu controle total, mas quando Montag, o bombeiro protagonista, mata Beatty o incendiando para poder fugir, tudo sai do controle e o sentido de morte e destruição se torna inegável, com todos sendo cúmplices mais ou menos culpados do estado das coisas. Ao fugir por um rio, simbolizando o processo de mudança de um fogo que precisa ser apagado pela água que regenera, Montage se deparou com um novo fogo: “como um olho que piscasse. Montag parou, receando poder apagar as chamas com o mero hálito de sua respiração. Mas o fogo estava lá, e ele se aproximou atento, desde muito longe. Precisou de uns quinze minutos até chegar bem perto e parar atrás de um arbusto para olhá-lo. Aquele pequeno movimento de cor branca e vermelha, um fogo estranho porque significava uma coisa diferente para ele. Não estava queimando, estava aquecendo.”
É quando Montag encontrou os “homens-livro”, aqueles que decoravam livros na esperança de que um dia seria possível reescrevê-los, como explicou Granger: “Algum dia, a carga que estamos carregando conosco poderá ajudar alguém.” É neste final do livro que encontramos um fio da meada para uma resposta à pergunta que não há não nos fazermos nesta altura: se não há como escapar do ovo da serpente, como ao menos não ser parte dela quando sua casca é quebrada? Porque ao nos darmos conta disso é impossível não se enxergar num beco sem saída, sem ter para onde ir e impotentes para mudar o que for. Em todo o livro acompanhamos Montag despertando sua consciência para a serpente que o engolira e se confrontando com essa impotência.
Não há um “final feliz” no sentido tradicional. O que há é a esperança de que algum seja possível no futuro. Mas para não perder essa esperança é preciso não se iludir a respeito e, como disse Granger: “nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada.” Pense aí em quantas discussões ideológicas você já não se meteu em redes sociais e aplicativos como whatsapp. Além de ter se afastado de amigos e familiares, o que mais você “ganhou” com isso? Eis o nada. O livro que Montag se tornará é parte do Eclesiastes, justamente o livro bíblico “pessimista” cujo narrador vê em tudo vaidade, sendo todas as ações vãs, inúteis, restando apenas uma coisa para o homem se apegar: “Teme a Deus e observa os seus mandamentos, porque isto é o tudo do homem.” (Eclesiastes 12:3)
Infelizmente, nas adaptações cinematográficas feitas, tanto a de Truffaut quanto a mais recente produzida pela mesma HBO que “queimou” E O Vento Levou…, não houve respeito pela escolha do autor para o livro que Montag se tornaria, optando por outros, como se pouca coisa mudasse no sentido final da obra. Mas não só mudaram como o sentido maior se perdeu. Porque por grandiosos que sejam os livros escolhidos nos filmes, nenhum pode significar o que significam as escolhas bíblicas de Bradbury. Ao mudarem isso, mutilaram o verdadeiro fim da história: porque Montag não ficou no nada do Eclesiastes, mas à medida que começou a caminhar com os demais homens-livros foi se lembrando de outro livro bíblico lido, o Apocalipse, terminando com a citação não do juízo final, mas do que se lhe segue, que é o “tudo”: “E do outro lado do rio, está a árvore da vida que produz doze frutos, dando o seu fruto mês em mês, e suas folhas servem para curar as nações.” (Apocalipse 22, 1-3)
Por isso, a afirmação de fé e esperança do fim do livro é infinitamente maior e melhor do que a das adaptações cinematográficas feitas. O que nos deixa com outra pergunta: qual o próximo passo? Nas palavras de Granger: “Primeiro, construiremos uma fábrica de espelhos, e durante o próximo ano não produziremos nada além de espelhos, e daremos uma longa olhada neles.” Que espelhos? Stendhal considerava a literatura “um espelho andante” da humanidade. Espero que nesta série de colunas tenha sido possível, pelos espelhos utilizados, ao menos ter ajudado a começar a nos enxergarmos dentro dos ovos da serpente, sejam eles de esquerda, direita, das minorias ou maioria, e também a darmos uma boa olhada na própria serpente que há dentro de cada um. Se isso aconteceu, talvez a “fome” por mais do que isso tenha sido despertada e você queira tentar, leitor-livro, tornar-se no futuro, quem sabe?, como a salamandra, símbolo do corpo de bombeiros do livro, que significa a capacidade de viver no fogo sem ser por ele consumido e que na iconografia medieval representava o homem justo que, em meio às tribulações, não perde a paz da alma e a confiança em Deus. Amem?
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