Depois do dilúvio, o arco-íris. Eis o sinal da aliança de Deus com todas as suas criaturas. Não me lembrava disso, confesso. Embora releia o Gênesis com frequência, simplesmente isso nunca me chamou a atenção na história de Noé. Até hoje, e não por acaso. Nunca é por acaso.
Na noite de quarta, eu e meu caçula conferíamos o catálogo da recém-chegada Disney+ ao país, quando ele se interessou por dois filmes que se passam no universo de Oz, perguntando do que se tratava. Combinamos de assistir. Momentos depois, com ele já tendo ido dormir, veio a notícia do assassinato de um amigo. Uma estupidez sem tamanho, menor apenas do que a tragédia consequente.
A noite mal dormida entregou uma manhã inutilizada, no dia em que costumo escrever para este espaço. Até tentei dar atenção a outra coisa, mas não consegui, não consigo. Foi quando o algoritmo do Spotify me apresentou a uma nova versão, apenas instrumental, de Over The Rainbow, a famosa canção do filme clássico de 1939 O Mágico de Oz, regravada agora por Yo-Yo Ma e Kahtryn Stott, num single intitulado Songs Of Confort And Hope. Não foi por acaso. Nunca é por acaso.
2020 é como O Mágico de Oz, mas sem mágico, nem Oz, somente o Kansas tornado o mundo todo, arrasado pelo furacão com forma de pandemia e lockdown
Decidi reassistir ao filme, que não está no catálogo da Disney+, porém, do qual só me lembrava da cena de Judy Garland, no papel de Dorothy, cantando a famosa canção que ganhou o Oscar daquele ano em que E O Vento levou... tudo o mais. Desconfio que continuarei lembrando apenas desta cena. E fiquei a pensar no quanto 2020 é como O Mágico de Oz, mas sem mágico, nem Oz, somente o Kansas tornado o mundo todo, arrasado pelo furacão com forma de pandemia e lockdown.
O que torna para nós a cena de Over The Rainbow ainda mais significativa, se pensarmos bem. Porque 2020 tem sido um ano maldito, desgraçado mesmo, obrigando a tentar fazer como Dorothy, que cantou esta música mirando o céu, para um único rasgo nas nuvens por onde passavam alguns raios de sol, mas sem arco-irís, o que faz sua esperança ser ainda maior, pois olhava ainda mais alto: “E em algum lugar, acima do arco-íris, bem no alto, há uma terra sobre a qual escutei uma vez em uma canção de ninar”. Não sei se sabe, leitor, mas esta canção tem versos introdutórios não cantados no filme, tampouco nas versões mais conhecidas. Dizem assim:
Quando todo o mundo é uma confusão sem esperança
E as gotas de chuva caem por todo lado
O paraíso abre uma vereda mágica
Quando todas as nuvens escurecem no céu
Há uma rodovia de arco-íris a ser encontrada
Apontando a direção pelo para-brisa
Para um lugar atrás do sol
Apenas um passo além da chuva
Não está fácil olhar para o alto, quanto mais acima do arco-íris inexistente neste ano, para este lugar além da chuva e atrás do sol “onde os problemas se derretem como balas de limão”. Mas precisamos. Como precisamos. Foi o que esta música, esta cena, fez comigo, fez por mim, hoje. Porque querendo saber mais sobre ela, deparei-me com o arco-íris do Gênesis, com o sinal de Deus. Não foi por acaso, nunca é por acaso.
Como não foi a última foto postada por meu amigo em um de seus perfis de rede social. Foto recente tirada no Rio de Janeiro, com toda a família – ele, esposa e os três lindos filhos – à frente do Cristo Redentor. Em algum lugar acima do arco-íris, tenho certeza, os braços abertos do Cristo estão se fechando num abraço apertado no Rodrigo. Também nos tantos mortos neste ano da peste. E é mirando o olhar para o mais alto dos altos que se torna possível sentirmos esse abraço também por aqui. Afinal, o arco-íris nada mais é do que uma ponte por onde desce o Paraíso, inclusive em forma de canção, dando sentido a todo acaso e conforto e esperança a quem tanto precisa de consolação.
Deixe sua opinião