Levava o nome de biblioteca, mas não era mais do que uma sala cedida aos fundos da secretaria de educação. Salvo alunos obrigados, quase ninguém da pequena cidade a usava. Dona Glória, como era chamada, ali se aposentou e ficou, trabalhando como voluntária, apenas para que a biblioteca não fechasse. Já se vão 30 anos trabalhando ali sozinha. Quando morresse, dificilmente seria substituída e a sala voltaria a servir para abrigar qualquer outra coisa. Sua tristeza aumentou ao pensar nisso.
Mirou com desalento sua mesa, repleta de documentos e encomendas. Abriu primeiro os pacotes, eram os livros pedidos antes da pandemia. Surpreendeu-se por terem sido entregues. Catalogou, etiquetou e já os dispôs na prateleira de “novidades”, menos Por quem os sinos dobram, que quase começou a ler ali mesmo. Guardou na bolsa e se pôs a organizar tudo, ficando aliviada por nada ter de responder com urgência, apenas dar ciência e arquivar, menos um envelope grande do Exército, endereçado à prefeitura e aos cuidados dela.
Assustada, abriu o envelope. Continha uma carta enviada pelo Museu do Holocausto, de Jerusalém. Estava aberta, contendo uma folha datilografada com timbre do museu, outra carta, muito surrada de tão antiga e um rosário de madeira. Começou pela do museu. Estremeceu, estava destinada à sua mãe que morrera há dois meses, aos 92 anos, tendo sido enterrada sem velório, nem funeral, mais uma das consequências da pandemia. A ansiedade a fez ler aos saltos: “Descobrimos em meio aos objetos colhidos… nosso projeto Recolhendo Fragmentos… carta foi erroneamente classificada como sendo de um judeu… encaminhamos esperando ainda encontrá-la viva e com saúde.” Não conseguia pensar, estupefata. Sua mão tremia, com cuidado desamassou a outra carta, que quase se desfaz ao toque. E leu.
“Lourdes,
Perdoa-me. Estou à beira da morte. Tentamos mais uma vez tomar Monte Castelo, sem sucesso. Fui muito ferido, já desenganado pelo médico. Quem escreve para mim é o padre João, que acabou de ouvir minha confissão, deu-me a extrema unção e também está fazendo esta caridade de atender meu último pedido de te escrever esta carta. As palavras bonitas emprestei dele, você sabe que mal sei falar direito.
Sei que o que fiz não tem conserto, Lourdes. Se pudesse voltar no tempo e nunca ter te pedido para tirar o bebê, eu voltaria. Se pudesse voltar no tempo e não ter fugido me alistando para esta guerra, eu voltaria. Se pudesse voltar agora, eu voltaria, casaria com você e tentaria ser o melhor pai que pudesse. Mas não posso, não posso mais nada. Só o que me resta é te pedir perdão pelo que fiz, por quem fui, e rezar para que você tenha mantido o bebê.
Sei que você não está acreditando, nunca fui de igreja, nunca dei bola para essas coisas. Talvez seja apenas medo do inferno mesmo, mas espero que não apenas. Nos primeiros dias por aqui, uma moradora distribuiu rosários aos soldados dizendo que foram bentos por um santo vivo do sul da Itália, de nome Pio. Não sei quem é, talvez você conheça, dizem ser famoso pelo mundo. Enfim, depois de uma derrota imensa, com vários companheiros mortos, estávamos todos desolados de noite no acampamento, num frio de congelar os ossos. Padre João pediu que pegássemos os rosários e rezássemos com ele.
Foi no primeiro terço que tudo começou, Lourdes. Antes das Ave-Marias, o padre contava um pedaço da história de Jesus, pedindo que a imaginássemos como se aquilo se passasse ali, no meio de nós. Eu até lembrava bem de tudo, mas acho que nunca prestei atenção de verdade. No primeiro mistério, quando depois do anjo saudar Maria e antes de dizer a que vinha, deixando-a pensativa e turbando sua fala, o tempo parou para mim. Voltou-me toda a confusão da minha alma quando você me disse que estava grávida. Eu não conseguia nem pensar, fiquei assim como essa palavra diz, que padre João me explicou o sentido: turbado. Mal escutei o restante da história e fui rezando nas contas, não entendendo o que se passava comigo.
No segundo mistério, quando Isabel disse a Maria: “bendito é o fruto do teu ventre”, comecei a chorar como nunca chorei. Nunca mesmo. Não conseguia pensar no menino Jesus, porém. Para mim o bendito fruto estava em teu ventre e eu o havia renegado. O que foi que eu fiz, meu Deus? Uma tristeza tão grande, mas tão grande, tomou conta de mim que não sei descrever. E dela não saí nem com o mistério do nascimento de Jesus. Tudo que conseguia imaginar era José, seu pai, angustiado por não ter conseguido um lugar melhor para sua mulher parir do que uma manjedoura. E fiquei a pensar na miséria de minha vida, Lourdes, enquanto todos iam contando as Aves-Maria que eu maquinalmente repetia, lembrando de que mal dava para o aluguel o dinheiro que ganhava trabalhando nas plantações de mandioca. Como eu poderia sustentar você e o bebê com tão pouco? Não consegui mais continuar rezando.
Dias depois, tentamos de novo a mesma missão, a de Monte Castelo. Não sei de onde veio os tiros, só senti me furarem. Caí, na certeza que estava morrendo. Comecei a rezar o rosário, de supetão, sem nem pensar, tentando alcançar as contas no bolso. Mas não achava. Fiquei a olhar o céu, esperando o fim, pedindo perdão por minha vida, pelo que te fiz especialmente. Acho que falava em voz alta porque quando me acharam os maqueiros me acompanharam na reza. E padre João, ouvindo, veio correndo a nos conduzir na oração. Foi quando chegamos no segundo mistério, quando o padre ia repetindo o cântico de Maria, que foi me dando uma paz, como se o canto fosse para mim, era eu quem tinha sido transtornado nos desígnios de minha soberba, esvaziado das riquezas do meu egoísmo. De repente, senti algo me preencher de vida, que o padre me explicou depois que era a Misericórdia de Deus me perdoando.
Desta vez, no mistério do nascimento, eu só tinha olhos para o menino e para a alegria de José, pouco ligando para a manjedoura que tanto me agoniou. Então, quando o padre foi falando de Simeão, no quarto mistério, pedi que me fosse dada a graça que ele recebeu, que pudesse também me despedir consolado desta vida. Só terminamos o terço depois de chegarmos ao acampamento, a esta tenda de onde te escrevo. Antes do último mistério, contei ao padre entre lágrimas tudo que transbordava do meu coração e ele me interrompeu, dizendo: confesse agora, meu filho, depois terminamos o terço. Nem sei como faz essas coisas, mas com a ajuda do padre fui confessando tudo. Ele me absolveu, senti-me em paz e rezamos a última parte, o último mistério, da perda e reencontro do menino Jesus no templo.
Não sei explicar essas coisas, Lourdes. Só sei que na hora em que Maria questionou Jesus da aflição que sentia por tê-lo perdido, do quanto ela e José o buscavam, veio-me toda a vida de nosso filho (ou filha? Acho até que prefiro menina) que não conhecerei, nem me conhecerá. Mas não senti aquela tristeza de morte, foi o contrário. Sabe que entendo a resposta de Jesus? “Para que me buscáveis? Não sabíeis que importa ocupar-me nas coisas que são do serviço de meu Pai?”. Nem Maria nem José entenderam, mas eu entendi, quer dizer, acho que entendi. Padre João está dizendo que sim, que entendi. Porque estou à porta do Templo e Jesus me receberá com Sua misericórdia que se estende de geração em geração e por isso tenho fé esta carta e rosário chegarão também a você e nosso bebê.
Se pudesse, daria minha vida por vocês. De certa forma, acho que a dei, ainda que de um jeito todo torto. Não tenho nada para deixar de herança, Lourdes, absolutamente nada, salvo esta carta e este rosário. Se puder entregá-los a nosso filho quando for crescido, fará por mim mais do que mereço nesta vida. Que ele saiba que ao menos no último suspiro teve um pai e, se tiver fé, me terá por perto eternamente.
Do para sempre seu,
Luís"
Glória permaneceu vários minutos imóvel, em prantos. Tinha orgulho do pai, achava que tinha sido um herói, pela história contada pela mãe do valente soldado que morreu na segunda grande guerra. Nunca soube de nada disso que acabara de ler. Não sabia que não tinham se casado, não sabia do que ele pedira à mãe, não sabia. Os 75 anos de sua vida iam voltando. Vivera com a mãe todo este tempo, apenas ela e a mãe, nenhuma se casando. Agora, estava completamente sozinha. Voltar ao trabalho era sua forma de tentar seguir em frente sem ter mais nada a esperar. Tinha?
Absorta em turbação, sentia raiva, tristeza, mas também ímpetos de alegria e gratidão. Contra e a favor dele, da mãe, de Deus, da vida inteira. Não conseguia mais pensar, nem remoer. Contemplando as contas do rosário, imaginando o pai a segurá-lo, foi se sentindo esvaziar e sem perceber começou a rezar como ele rezou. A consolação não demorou a vir, nem a sensação daquela presença, de ambos. No mistério do nascimento, entendeu: porque sua mãe havia guardado tudo no coração, deu-lhe em vida um pai que nunca tivera. E agora, na morte, deu-lhe o pai que sempre teve.