Faz meses já. Até tento escrever algo sobre o mau exemplo de nossos líderes nesta pandemia. Do prefeito que posta foto de seu “café da manhã italiano” ou daquele outro que fecha sua cidade e vai assistir ao seu time jogar bola em outro estado, passando pelos governadores das festinhas pessoais ou daquele “descansar” em Miami (sem máscara), chegando ao chefe maior da nação que nada lidera, muito espera e pessimamente se comunica. Mas não consigo. Apenas olho, lamento e passo.
Porque entre me deixar levar pela sanha por um bode expiatório ou escolher algum bode para “passar pano”, prefiro largar as pedras e os panos pelo chão desse deserto de lideranças e desço pelo caminho das “pessoas comuns”, como médicos e enfermeiros atuando na linha de frente da pandemia, ou de pais e mães se virando para sustentar suas famílias porque seus trabalhos são desprezados, considerados não essenciais, e seus filhos estão proibidos de ir à escola. Aí os bons exemplos abundam; talvez você seja um deles, leitor heroico.
Haveria solução? Sempre há. Mas ela só pode acontecer com bons exemplos que nos inspirem, nos orientem
Acontece que mirar os valorosos anônimos só faz aumentar a distância em que estamos de nossas lideranças, que vivem literalmente num mundo à parte. Como, infelizmente, a regra no país há décadas, se não séculos, é o mau exemplo de nossos líderes, já nem nos espantamos mais com as barbaridades que cometem e só aumentam, como hoje também vemos nas atitudes e comportamentos dos atuais ministros do STF, que agora brilham na disputa pelo posto de darem o exemplo mais vergonhoso de todos.
A situação é tão desoladora e sem perspectiva de melhora, inclusive no longo prazo, que já estamos naquele ponto de ruptura institucional, tão conhecido nosso na história, em que não há mais limites, tudo tendo se rebaixado a um jogo de poder descarado. Estaria a população, de tão desesperançada, já nem se importando mais se vier um golpe, seja de quem for, perigando até apoiar? Porque é um fato que qualquer ordem, por pior que seja, sempre parece melhor que o caos quando instalado, que é nossa realidade atual.
Haveria solução? Sempre há. Mas ela só pode acontecer com bons exemplos que nos inspirem, nos orientem. E, se não os temos nos líderes atuais, que a arte nos socorra. Nesta semana morreu o príncipe Philip, marido da rainha da Inglaterra. Fez-me lembrar de um dos episódios do magnífico seriado The Crown, o sétimo da terceira temporada, centrado na figura do príncipe que passava por uma crise existencial, sentindo que, por ser quem era, apenas cumprira um papel figurativo, não tendo realizado nada em sua vida, que não havia deixado sua marca.
No episódio, o príncipe se encantou com os astronautas que foram à Lua e fez questão de conversar privadamente com eles, frustrando-se em seguida por se demonstrarem homens “banais”, não os heróis homéricos que imaginava que fossem. Acabou admitindo que precisava de ajuda, procurando pelo novo deão, participando de um grupo de apoio a clérigos. Desabafou, reconhecendo que passava pela crise da meia-idade, algo que achava ridículo, mas era uma verdade. Falou, então, da mãe, que morreu um pouco antes, e confessou que ela viu o problema dele, que lhe faltava algo: “Ela me perguntou ‘como está sua fé?’. Estou aqui para admitir que a perdi. E, sem isso, descobri que o nada que há na lua, a não ser desolação assustadora, silêncio sepulcral, melancolia, é isso que é a falta de fé”.
O quanto essa fala é produto da criação artística ou realmente aconteceu assim, pouco importa saber. Porque o exemplo funciona mesmo assim. Funciona não para gostarmos do príncipe, ou da monarquia inglesa. Mas para admirarmos um líder capaz de um exemplo de humildade e sinceridade como essa, diante de súditos que ele mal conhecia. O que poderia ser visto como sinal de fraqueza – e, portanto, mau exemplo – torna-se, pela verdade que a tudo resgata, mais do que um bom exemplo, mas algo modelar.
Não seria a nossa desolação assustadora também sinal não apenas da ausência de bons exemplos de liderança, mas também da nossa falta de fé? Talvez esteja aí a porta na qual devemos bater para recuperar a esperança. E o melhor é que bater na porta da fé já é abri-la. Num dos seus sermões, no mesmo episódio, o deão citou um trecho da famosa obra de T. S. Elliot Quatro Quartetos, da qual retirei o verso que me serviu aqui de título. E com ele termino citando outro trecho, mais longo, do poema East Coker, na tradução de Ivan Junqueira, deixando a porta aberta:
Encurva a lâmina o cirurgião ferido
E com ela interroga a parte lesionada;
Sob as ensangüentadas mãos, sentimos
A compaixão cortante de seu nobre ofício
Esclarecendo o enigma da equação febril.
Nossa única saúde é a doença
Se obedecermos à enfermeira agonizante
Cujo incansável zelo não visa agradar-nos,
Mas recordar-nos que, como o de Adão,
Nosso mal, para curar, precisa antes piorar.
O mundo inteiro só nos vale de hospital,
Último bem do milionário arruinado,
E onde, se tudo andar direito, poderemos
Morrer do absoluto e paternal cuidado
Que a cada instante nos ampara e tiraniza.
Faísca perna acima um calafrio.
A febre zumbe nos canais do cérebro.
Para aquecer-me, devo gelar e tremer
Entre os áglidos fogos purgatoriais
Cujas flamas são rosas, e a fumaça sarça.
Nossa bebida é apenas sangue gotejante,
Nosso único alimento carne ensanguentada:
Contudo, alegra-nos pensar que somos
Sadios, carne e sangue elementares – contudo,
Uma outra vez chamamos santa à Sexta-Feira.
Deixe sua opinião