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Para Laura

Foto: Simona Balint/Free Images (Foto: )

Sempre que acontecem esses tiroteios em escolas, como o ocorrido em Suzano ou seja onde for, lembro de Rudderless (Um Anjo nas Ruas), filme de 2014, dirigido por William H. Macy. Como é daqueles filmes em que os spoilers realmente estragam a experiência de assisti-lo pela primeira vez, então nada direi senão o óbvio: é uma história sobre o luto, a dor de um pai pela perda de um filho num massacre como esse de Suzano e que, ao descobrir que o filho compunha músicas, decide tocá-las, como uma forma de o filho seguir vivo, ao menos para ele.

No mesmo dia do ocorrido perdi um compadre, daqueles irmãos que a vida te dá, vitimado por doença, deixando uma filha de 11 anos. Peço licença, leitor companheiro, como aquele pai pediu à sua pequena plateia no filme para cantar não ao seu filho, mas junto com ele. Nada cantarei, fique tranquilo, mas espero escrever junto com meu irmão para sua linda e doce Laura.

 

***

 

Oi, Princesa,

Acho que teu pai não assistiu a esse filme contigo, mas provavelmente a trilha sonora deve ter colocado para você escutar, lá no cantinho sagrado dele onde quase todas as noites ficava escutando suas músicas e onde eu sempre ficava com ele quando visitávamos vocês. E deve ter colocado também porque a Selena Gomez faz parte da trilha e é uma das atrizes do filme. Uma das coisas mais belas no teu pai, ao menos para mim, era o quanto ele genuinamente amava as músicas e coisas que você amava. Sei que, sem você, dificilmente ele gostaria, escutaria, daria atenção. Por você, tudo.

Pela tua mãe também. Das músicas que amávamos, uma em especial acho que nem sua mãe ou a tia Lore sabem a razão de tanto gostarmos. E é uma música que faz parte da nossa amizade de mais de 20 anos. Fake Plastic Trees, do Radiohead, que você cansou de escutar também, tem uma letra meio besta, salvo pelos dois versos finais, que era tudo o que eu e teu pai gostávamos ali. Traduzidos, fica mais ou menos assim:

E se eu pudesse ser quem você quer,
Se eu eu pudesse ser quem você quer
O tempo todo
O tempo todo

Tanto eu quanto ele pensávamos nas nossas então namoradas, depois noivas, enfim esposas. Se nós pudéssemos ser quem elas queriam, o tempo todo, seríamos. Sabíamos que era impossível, fazia parte do romantismo que só nos permitíamos em forma de música (e você sabe o quanto gostávamos de uma musiquinha triste pra burro). Mas você tornou o impossível uma realidade, princesa. Porque teu pai foi, sim, por você, o tempo todo.

Depois de você, nas nossas infinitas conversas sobre músicas, quando apresentávamos bandas e compositores um para o outro, invariavelmente vinha o comentário: “A Laura ama isso”. A última vez que o vi pessoalmente foi na virada do ano e poucas vezes o vi sorrir tanto. Estava bem feliz. Sei que em boa parte era pela boa comida e a espera pelo café da manhã madrugueiro, mas enquanto conversávamos ele corria os olhos pelo salão te vendo dançar, sorrir, se divertir. Sempre foi por você, o tempo todo.

Um dos momentos mais importantes da vida dele foi ter te levado para assistir ao show do U2, em São Paulo. Ver a tua emoção, da tua mãe, ali, naquele instante, eu sei que foi tudo para ele. Porque nessas coisas eu o conhecia bem. Naquele momento vocês foram tudo o tempo todo. Sei que esta música, Original of The Species, o U2 não tocou nesse show e talvez você nem saiba que ela é dedicada à filha do The Edge, o guitarrista. Bono foi escolhido para padrinho da Hollie e escreveu esta letra cheia de conselhos para quando ela estivesse crescendo. Eu acho que são conselhos que teu pai te daria, ainda mais se soubesse quão cedo partiria. Infelizmente, por isso, os primeiros versos você já tem condição de entender melhor do que ninguém:

Baby, vá devagar
O fim não é tão divertido quanto o começo
Por favor, continue sendo criança em algum lugar do seu coração

Esse lugar, princesa, é onde teu pai está agora. Para sempre, o tempo todo. E não falo isso como quem quer acreditar, mas como quem sabe. É onde meu pai está desde que morreu para viver dentro de mim. É muito difícil explicar essas coisas, acho que só quem passou por isso conseguirá, se não entender, ao menos saber do que falo. Você verá que será assim. Esta semana mesmo li uma entrevista do escritor Valter Hugo Mãe em que ele disse algo que expressa bem o que não consigo dizer tão bem:

“Eu queria muito entender a morte e curá-la, achar a forma de ter uma vacina contra. E de alguma forma eu creio que tenho sempre uma relação com a solidão e com a memória. Eu estou muito convencido de que a solidão pertence a todos, não é algo que possa ser erradicado por completo. Por outro lado, a minha estranha forma de compensar a solidão é a memória. Ou seja, a construção de uma lembrança é algo que serve de companhia. A gente tem a percepção de que a vida é uma acumulação de situações e de afetos, de carinhos, de nomes, de pessoas que, quer elas estejam ou não conosco, a memória delas é uma companhia para sempre. É como superar a morte. A memória do meu pai, que faleceu, é a companhia que eu guardo dele. E a solidão serve para termos esse embate frontal conosco, saber que não há ninguém diante de nós que não nós mesmos. Mas a solidão não pode ser um objetivo, mas sim um instrumento para se chegar à companhia. O sentido da vida está nas relações.”

O sentido da vida está nas relações. No velório você esteve abraçada o tempo todo, pela família, pelas amigas, por sua mãe. É nessas relações que está o sentido da vida. Teu pai não poderá te abraçar mais assim, mas no teu coração ele estará para sempre abraçado e você nele, o tempo todo. Onde você for, ele estará. Com o tempo a dor da ausência, do vazio deixado, será preenchido pela boa saudade, aquela que é só presença sem risco de morte.

Sabe que a última mensagem que trocamos pelo WhatsApp foi no dia em que ele se internou? Ainda não sabíamos da gravidade, então fiz o que sempre fizemos, zoarmos com tudo. Mandei a mensagem:

Tá vivo?

Não teve condições de me responder, tudo foi muito rápido. Tua mãe nos lembrou que meses atrás ele acordou e viu Nossa Senhora no quarto. Lembro de quando ele me contou, sabia que nessas coisas eu seria bom confidente. Tentei não demonstrar muito minha alegria com isso na hora, apenas demonstrei que essas coisas acontecem com muita frequência e que só podia ser bom sinal. E foi. Lá naquele lugarzinho do coração veio a resposta à minha mensagem no Whats: “Opa, e como!”

Não escrevo esta carta para confortá-la nesse momento, querida. Isso se faz com os tantos abraços já recebidos e que continuam à tua disposição, para quando quiser e precisar. Como tentei te dizer entre lágrimas: “Você não perdeu um pai, ganhou pelo menos uns seis”. Estou entre eles, nunca se esqueça, especialmente naquilo que acho que só eu tinha com teu pai, naquele cantinho sagrado onde escutávamos nossas músicas. E por isso me lembrei do filme Rudderless. Porque uma das músicas do filho estava incompleta e foi o pai quem a terminou, cantando:

Acharei um jeito de cantar sua canção
Apenas cante junto
O que se perdeu pode ser reposto
O que se foi não está esquecido
Gostaria que estivesse aqui para cantar junto

Não perdemos teu pai porque seguiremos cantando juntos, princesa. Em 2014, mandei por e-mail para ele uma música que o Paul Weller compôs para sua filha, sugerindo que fizesse um vídeo com ela para você. Adorou-a, mas acho que não chegou a criar o vídeo. Eu gosto tanto que fiz um vídeo para o Henrique com ela. Talvez você a tenha escutado com teu pai. Se não, agora escutará comigo:

Ah, de vez em quando – baby, só de vez em quando
Olhe para trás, para essa época e sorria
E tenha a Graça de saber
O que você viu
E se preencha de amor novamente

Com amor,

Do teu tio Chico

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