Detalhe de “Cristo aparece aos apóstolos a portas fechadas”, de Duccio di Buoninsegna.| Foto: Domínio público
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Bukowski certa vez escreveu ou falou: “A Bíblia diz: ‘Amai ao próximo’. Isso pode significar algo como: ‘Deixe-o em paz’.” Eu sei, Bukowski não é lá das melhores referências nem tem autoridade sobre o que quer que seja, mas ele tem razão aqui. Às vezes, deixar o outro em paz é a melhor forma de amá-lo mesmo. Isso quando não é a única que restou.

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Talvez este seja o primeiro significado de paz, ao menos aquele mais facilmente compreendido: esse “deixar quieto”, esse respirar, essa tranquilidade, ainda que provisória e com a perturbação se mantendo latente. A paz seria, assim, um armistício, um acordo, às vezes com o outro, às vezes com o mundo, muitas vezes consigo mesmo.

É insuficiente, porém. Isso definiria a paz apenas como ausência de algo e não sendo algo em si. No fim das contas, não chegaria a ser mais do que um intervalo na guerra ou angústia, confundida com um estado de relativa segurança e calma. A paz que um rivotril traz, no fim das contas. Não pode ser só isso. E, se for somente isso, então a paz perfeita seria a morte, se pensar bem. E há quem pense assim. É até usual escutar falar de algum falecido que agora estaria em paz ou: “Enfim descansou...”

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Imaginemos, ao contrário de John Lennon, que existem o Paraíso e o Inferno. Vamos lá, é fácil se tentarmos

John Lennon, em seu hino rivotril Imagine, pensava assim também, embora desconfio que nem se deu conta disso. Se a inexistência de paraíso e do inferno tornaria o mundo melhor, com todo mundo vivendo em paz, então a morte seria a paz definitiva.

Mas imaginemos diferente. Que existem o Paraíso e o Inferno. Vamos lá, é fácil se tentarmos.

Shalom, a palavra famosa em hebraico que significa “paz”, carrega também mais significados, como o de integridade. Em geral entendemos integridade com sentido moral, de honestidade, probidade. Mas aqui é outra coisa: é no sentido de ser inteiro, completo.

Quando estamos completos? Apenas com a morte. Até lá, há tempo, com algo se acrescentando a cada segundo, ainda que seja apenas mais uma batida do coração. Ao morrer, completa-se o nosso tempo, nada mais será acrescentado. Mas não ficamos “inteiros”; pelo contrário, a morte nos desintegra.

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A morte não é shalom, portanto, palavra que costuma ser usada acrescida de outros termos, como ao cumprimentar alguém, quando se fala em seguida alechem, significando “A paz sobre vós”, ao que se responde invertendo os termos: alechem shalom. Talvez tenham sido as palavras que Jesus falou aos discípulos ao encontrá-los depois da ressurreição, dizendo: “A paz esteja convosco!” (João 20,19).

A paz rivotril faz parte aqui também. Deseja-se, é claro, esse estado de tranquilidade e segurança. Mas não apenas isso. É evidente que há uma dimensão espiritual nesta paz dita por Jesus. Qual seria seu significado?

No contexto da Última Ceia, Jesus disse aos discípulos: “Deixo-vos a paz, minha paz vos dou. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe nem se intimide o vosso coração” (João 14,27). Se não a dá como o mundo a dá, não está a falar da paz rivotril. Por isso mesmo acho que pediu para não deixarem o coração ficar com medo. Porque sabe que reduzimos a paz à ausência de temor, dor e sofrimento. Mas persiste a pergunta: que paz seria esta que Jesus nos deixou?

Quem fez uma boa confissão sabe bem como é se sentir em paz com Deus

Voltemos ao Shalom, talvez ajude mais do que parece. A palavra também significa harmonia. Em sentido espiritual, a paz seria a harmonia da alma com Deus. Como sou católico, falo a partir desta experiência. Quem fez uma boa confissão sabe bem como é se sentir em paz com Deus. É uma paz física e psíquica também, uma leveza e serenidade, mas que não encontra causa em outra coisa que não seja na reconciliação com Ele, como efeito do sacramento do perdão, esse rivotril de Deus que Jesus nos deixou.

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Imagine agora como será no Paraíso, e entenderá por que shalom também significa integridade. E entenderá também o que disse Santo Agostinho: “Tu, Senhor, nos fizeste para ti e inquieto está nosso coração enquanto não repousa em ti”. Apenas imagine. É fácil, se você tentar.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]