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Em março de 1973 era lançado o disco The Dark Side Of The Moon, do Pink Floyd. Se você precisa ser informado da relevância da obra, facilito seu trabalho. 50 anos se passaram e o disco se mantém atual, até mais do que quando nasceu. Diria que até mais necessário.
Há anos não o escuto na íntegra, embora volta e meia re-escute algumas das músicas, especialmente Time. Penitencio-me, pois não foram feitas para serem ouvidas separadas. The Dark Side Of The Moon é o que se chama de “disco conceitual”, cuja forma só pode ser experimentada com a audição completa.
O disco abre com a batida de um coração, com Speak To Me servindo como uma típica overture. Não há canto, só o registro de homens conversando entre si sobre o quão loucos estariam, parecendo não perceberem do que estão fazendo parte, como se ouvidos a uma certa distância. Sons do tilintar dos ponteiros de relógio, de uma caixa registradora, de um helicóptero vão crescendo até que, sem intervalo, inicia-se Breathe, silenciando o barulho externo, convidando a um olhar interior, mais atento a si, respirando e meditando sobre o que seria a vida, toda a sua vida.
50 anos se passaram e The Dark Side Of The Moon se mantém atual, até mais do que quando nasceu. Diria que até mais necessário
Se Speak To Me / Breathe leva o ouvinte para dentro de si, On The Run o expulsa para o mundo exterior, para a correria do dia a dia simbolizada pelos passos de alguém correndo num aeroporto escutando a chamada para ter a bagagem e passaporte em mãos. Não há tempo para “respirar”. Surge Time, uma obra-prima a retratar como perdemos tempo nessa vida preenchendo-a com compromissos ou divertimentos até que um dia você se dá conta que “dez anos se passaram / ninguém lhe avisou quando correr / você perdeu o tiro de largada”.
Mas o que foi perdido, o que deveria ter sido aproveitado? A música é uma reflexão sobre isso, uma tentativa de encontrar respostas ao que, enfim, daria sentido à vida. Mas não parece haver resposta, restando constatar que “suportar em um desespero silencioso é o jeito inglês / O tempo se foi, a música acabou, achei que teria algo mais a dizer...” O verso sobre o “quiet desperation” é uma referência à famosa frase de Thoreau: “A massa dos homens leva uma vida de desespero silencioso”. Não levamos?
Time encerra com o que, no encarte, a banda chama de uma reprise de Breathe, mas desta vez o eu lírico está em casa, cansado e com frio, aquecendo-se perto do fogo, escutando ao longe o sino de um funeral. E a morte vem com a bela The Great Gig In The Sky, outra quase só instrumental, apenas com alguém falando não ter medo de morrer e o canto sem letra de Clare Torry dando voz ao desespero silencioso.
Assim termina o lado A do álbum, criando uma moldura (diria que até metafísica) de sentido para o que se escuta no lado B, que é dedicado àquilo com que costumamos preencher o tempo da vida, disfarçando esse desespero. Money, a mais famosa, dispensa explicações, fala da “raiz de todo o mal de hoje em dia”, do quanto vivemos pelo e para ganhar dinheiro. Na sequência, Us and Them, que na atualidade ganha mais significado pela polarização política extrema que estamos a viver. A música é sobre a guerra, sobre como nos dividimos entre “nós” e “eles”, mas, na realidade, somos apenas “homens ordinários” que nem sabemos pelo que estamos a lutar. Vem, então, a instrumental Any Colour You Like, deixando o ouvinte preenchê-la com a letra de sua vida, com o que tem preenchido o seu tempo, distraído o seu desespero.
As duas últimas faixas estão conectadas sem intervalo. Brain Damage é sobre enlouquecer. Começa falando dos lunáticos por todo lado, na grama fora de casa, mas que também adentram nossa casa, trazidos à época pela mídia, hoje pelas redes sociais, passando pelo próprio eu lírico que constata que também dentro dele há um lunático vivendo. No contexto do disco, enlouquecer parece ser a consequência do habituar-se ao desespero silencioso, ou seja, não uma loucura estrepitosa, mas calma, cantada aqui quase como se fosse uma canção de ninar, interrompida por risos nervosos de vez em quando.
Mas, quando começa Eclipse, tudo explode num clímax paradoxal, cuja letra não fala de desespero, mas de afirmação da vida, cantando-se: “Tudo o que é agora e tudo que já foi / tudo que há por vir e tudo que há debaixo do sol está em sintonia (tudo) / Mas o sol é eclipsado pela lua”. A música então silencia, restando apenas a batida do coração com que o disco iniciou e se encerrará, não sem antes uma voz dizer as últimas palavras: “Não há realmente lado escuro na lua. Em verdade, é toda escura”. Ou seja, embora o disco trate do lado escuro da lua, ao atravessarmos essas trevas descobrimos que, na realidade, não há escuridão, a não ser momentânea, até a luz do sol voltar a atingir esse lado escurecido. E atingirá.
Visitar o lado escuro da lua é, no fim das contas, descobrir seu lado iluminado, não por ela mesma, mas por algo que a transcende e a torna visível, real
É como se o disco terminasse dizendo que tudo o que cantou, da correria vazia do dia a dia, com a percepção da passagem do tempo sendo apenas um desperdício deixando um vazio que tentamos preencher com tentativas fracassadas de sermos felizes, seja como e com o que for, com dinheiro ou outra coisa, com nossas guerras e lutas diárias, resultando no desespero silencioso ou gritalhão que vai nos enlouquecendo aos poucos, deixando-nos em trevas, enfim, mesmo com tudo isso existindo, sendo verdade, nada disso é capaz de eclipsar o sol para sempre, de negar a existência da luz. Visitar o lado escuro da lua é, no fim das contas, descobrir seu lado iluminado, não por ela mesma, mas por algo que a transcende e a torna visível, real.
É aqui que o fim se torna, na verdade, um começo. Se voltarmos à primeira música do disco agora, perceberemos que a conversa dos sujeitos se considerando loucos remete de imediato a Brain Damage, fazendo do lado B o lado A, com este significando que o próprio escutar do disco pode ser como dar uma pausa na loucura da vida, na correria do dia para ganharmos dinheiro, para vencermos nossas guerras, sejam quais forem, convidando a respirar com Breathe, que é também um voltar-se para dentro.
Quem quiser ter ouvidos para ouvir escutará em The Dark Side Of The Moon não o desespero desfeito do silêncio, mas o som da esperança que se renova a cada nascer do sol
Time, então, pode ser mais do que uma confissão dolorosa do tempo perdido, mas uma tomada de consciência de que podemos aproveitá-lo, dando a devida atenção ao aqui e agora, como, por exemplo, escutar esta música. Não como algo que entretém apenas, que preenche o tempo vazio e distrai do desespero silencioso, mas como ocasião para o encontro de algo vivo, presente, consolador, doador de sentido. É como um “voltar para casa”, escutando seu coração que é seu lar, aquele cantado na reprise de Breathe, com o aquecer-se próximo à lareira formando uma imagem da presença desse algo vivo que não é apenas um refúgio interior em meio à loucura reinante que nos leva à morte, mas que transfigura a própria morte, anunciada pelo sino, que agora não é mais do que um eclipse da vida, seu lado escuro, mas incapaz de apagar ou esconder definitivamente a luz.
Com isso, é possível experimentar a grandiosa luminosidade no “show no céu” que The Great Gig In The Sky revela, de forma mais comovente agora. É ela quem realmente encerra o disco, mas sem terminá-lo, dando voz ao que é eterno e inefável, ao que está presente o tempo todo, simbolizado na presença de grandes coisas como o sol, ainda que não vejamos sua luz, mas também nas pequenas, como na respiração, ainda que não percebamos sua constância, ou nas batidas do coração, ainda que abafadas pelos ruídos constantes do dia a dia. Enfim, quem quiser ter ouvidos para ouvir escutará em The Dark Side Of The Moon não o desespero desfeito do silêncio, mas o som da esperança que se renova a cada nascer do sol, nesse the great gig in the sky.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos