Foto: Daniel Caron/Gazeta do Povo| Foto:

No seu discurso de aquecimento para a prisão, Lula disse: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia misturada com as ideias de vocês. Minhas ideias já estão no ar e ninguém poderá encerrar. Agora vocês são milhões de Lulas”. Bem, se alguém não é mais um ser humano, então só restam três opções de seres vivos (até onde se sabe, Lula vive): ou é vegetal, ou animal, ou divino. Como nenhum vegetal ou animal tem ideias e tampouco se torna uma, só restou a Lula ser divino. É de um ridículo sem tamanho, claro, mas não sem par.

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Essa tentativa de divinização de líderes políticos por eles mesmos é típica, diria até essencial, da ideia que Lula diz ter se tornado. Mas que ideia seria esta? Ele mesmo esclareceu em parte: “A morte de um combatente não para a revolução.” E para dar concretude a esta revolução Lula foi explícito, convocando para duas ações, uma imediata e outra para quando (e se) retornar ao poder: “Eles têm de saber que nós vamos fazer definitivamente uma regulação dos meios de comunicação para que o povo não seja vítima das mentiras todo santo dia. Eles têm de saber que vocês, quem sabe, são até mais inteligentes que eu, e queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade.”

Em outras palavras, insurreição constante e, tomando o poder, controle sobre a mídia, o que significa, por óbvio, o fim da liberdade de imprensa, ou seja, da liberdade de expressão e opinião, o que é o primeiro passo decisivo para a mudança dessa mesma ordem legal em uma ordem autoritária em que o Estado teria o monopólio da verdade. Quando essa ideia vem embalada nesse culto à personalidade de um “grande líder”, o que se revela é muito mais do que uma ideia autoritária, é totalitária, tipicamente comunista.

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Não uso aqui o termo comunista como xingamento gratuito com quem pensa diferente, como já se tornou hábito no Brasil fazer com os termos comunista e fascista. Não. Refiro-me aqui ao comunismo raiz mesmo, tal como ele se realizou em vários lugares do mundo. Na Rússia comunista o culto ao “grande líder” se estabeleceu desde o princípio, com os ícones da Igreja Ortodoxa sendo substituídos por ícones de Lênin nas casas das famílias russas. Não à toa Lênin foi mumificado depois da sua morte e seu corpo exposto ao público em um mausoléu na Praça Vermelha, em Moscou. Está lá até hoje, com a múmia sendo mantida num sarcófago em temperatura de 16ºC e umidade de 80% a 90%. Se quiser visitá-lo, aliás, dá para fazer até um tour virtual. A ideia foi repetida na China, com o mausoléu de Mao Tsé-Tung, em Pequim; no Vietnã, com o mausoléu de Ho Chi-Minh, na cidade de Hanói; e na Coreia do Norte, com o mausoléu de Kim Il-Sung, em Pyongyang.

Onde quer que a revolução comunista tenha vencido, coisas desse tipo foram feitas para cultuar seus “grandes líderes” que, já em vida, de tudo faziam para não serem considerados meros seres humanos, mas encarnações de uma ideia mais do que humana, literalmente divina. Stálin, por exemplo, que se dizia ateu, durante a Segunda Guerra Mundial permitiu a reabertura das igrejas russas, dizendo ter recebido um sinal dos céus. Nessa mesma época passou a aparecer publicamente com um uniforme branco, posando de “anjo da paz mundial”. O famoso quadro de Picasso com a pomba branca, que se tornou símbolo mundial da paz, teria sido encomendado por Stálin que, ao fim da Segunda Guerra, lançou um de seus filmes-propaganda, A Queda de Berlim, simbolizando muito bem essa ideia de que o grande líder seria mais do que um ser humano. Veja com seus próprios olhos:

Se o leitor não sabe ler bem as legendas em inglês, eu faço um resumo das mais importantes. No início, os soldados estão a conversar e um deles diz que há um rumor de que Stálin estaria entre eles ali, ao que seu comandante respondeu: “Houve algum tempo em que lutamos sem Stálin? Stálin está sempre conosco.” A seguir Stálin aparece “no céu” e a multidão de soldados canta o hino Glória à Stálin!. Ao descer do avião – vestido com o uniforme branco, claro –, a multidão corre ao seu encontro, inclusive alguns com bandeiras dos EUA, Inglaterra e outros países, deixando claro que ele não fala apenas como comandante dos soviéticos, mas de todo o “mundo livre”. Depois disso vem a cena do casalzinho que se reencontra e vai a Stálin, com a mulher pedindo para lhe dar um beijo “por tudo que ele fez pelas pessoas”, e o filme termina com o Grande Líder dizendo: “Vamos manter a paz para o futuro. Paz e felicidade para todos vocês, meus amigos!” A ideia de anjo da paz deu tão certo que Stálin ganhou por duas vezes o Nobel da Paz, em 45 e 48. Depois de sua morte, chegou a ser mumificado também e colocado ao lado de Lênin, mas isso não durou uma década, pois com o revisionismo soviético iniciado com Kruschev seu corpo foi retirado do mausoléu e enterrado próximo ao Kremlin.

Na América Latina, o culto ao “grande líder” também foi aplicado, como se vê com a figura icônica de Che Guevara. Embora Fidel Castro não quisesse que o mesmo fosse feito com ele, rejeitando qualquer manifestação nesse sentido, é impossível dissociar a Cuba comunista da sua pessoa que “reinou” por décadas, mantendo o mesmo estilo totalitário soviético. O mesmo culto se tentou e ainda se tenta fazer com Hugo Chávez na Venezuela, cujo corpo só não foi embalsamado porque erraram na sua conservação até a chegada dos especialistas que fariam sua mumificação.

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Ou seja, quando Lula disse que “não é mais um ser humano” e que “A morte de um combatente não para a revolução” não está dizendo nenhuma novidade, mas está dando sequência, isso sim, à ideia de revolução que diz encarnar e que já tem uma longa história de tragédias e morticínios nesses antepassados citados, e que ele próprio está a repassar às novas gerações, como fez nesse mesmo discurso de despedida (que ele espera ser provisória), ao terminar se referindo a Manuela D’ávila e Guilherme Boulos, ambos candidatos à Presidência do Brasil pelo Partido Comunista e PSol, respectivamente: “E quero dizer a vocês, Guilherme e Manuela, a vocês dois, que para mim é motivo de orgulho pertencer a uma geração, que está no final dela, ver nascer dois jovens disputando o direito de ser presidente da República neste país.”

É bastante significativo que Lula tenha “passado o bastão” para presidenciáveis do PCdoB e PSol. Ou seja, ao se colocar não mais como um ser humano, mas como uma ideia “misturada às ideias de vocês”, Lula tenta se transformar num símbolo aglutinador não apenas de seus seguidores devotos, não apenas do PT, mas de toda a esquerda brasileira. Daí porque os legisladores esquerdistas terem pedido que fosse acrescido a seus nomes no parlamento o nome de Lula. O culto ao “grande líder” é fundamental para a preservação da ideia revolucionária, que se alimenta tanto de suas vitórias como de suas derrotas, servindo tanto para o combate cultural, a chamada “revolução passiva”, que atua lentamente no tecido social e cultural, transformando o senso moral do povo, como também servindo para a revolução “ativa”, explícita, mobilizando os revolucionários na luta pela manutenção do seu projeto de poder, como acontece agora com o chamado à ação de Lula para “queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade.”

Dará certo? Pelo que vem se revelando desde a prisão da Ideia, não. Seu poder de mobilização vem sendo muito menor do que se imaginava. A ideia Lula tem comovido pouca gente, nem mesmo quem parece lhe seguir por amor, como constatou a reportagem desta Gazeta do Povo, feita no acampamento da militância em torno da Polícia Federal, onde a Ideia está presa. Uma das militantes, quando indagada sobre eventual remuneração para estar ali por amor a Lula, respondeu: “ninguém faz nada de graça”. De fato, e esta ideia revolucionária, como a história prova, custa tão caro que não há dinheiro capaz de compensar; afinal, segundo estimativas, o comunismo matou mais de 100 milhões de pessoas no mundo todo. Até agora. Mas que importa isso? Se “a morte de um combatente não para a revolução”, quanto menos a morte de combatentes adversários.

Enfim, pensando bem, Lula dizer que “não é mais um ser humano” até que faz bastante sentido, não?