“Tem gente que recebe Deus quando canta. Tem gente que canta procurando Deus. E eu sou assim com a minha voz desafinada, peço a Deus que me perdoe no camarim.” Estes são os primeiros versos da última canção, Quando eu estiver cantando,do último disco de Cazuza, Burguesia. Conheci-a na voz de Renato Russo, num show em homenagem póstuma ao compositor. Foi amor à primeira audição. Seja no arranjo original, seja na versão de Renato, com apenas voz e violão, e que combina muito mais com a forma da música, a sinceridade é comovente.
Cazuza enfrentava a Aids quando gravou esse disco que é duplo, com participações e parcerias de vários artistas, como Caetano Veloso, Lobão e Herbert Vianna. Estava internado na Clínica São Vicente, de cadeira de rodas; algumas canções gravou até deitado na cama. Sua voz, que já não era lá essas coisas, até que esconde sua debilidade, parecendo não estar tão mal como estava. E assim era “porque meu canto é o que me mantém vivo”, como nos confessa no fim de Quando eu estiver cantando. Era, porque, depois de morto, são suas letras que o mantêm vivo.
Cazuza e Renato Russo estavam longe da santidade, longe de terem o coração preenchido. Mas não estavam longe de rezar pedindo isso, pelo contrário
Cazuza morreu em 1990, seis anos antes de Renato Russo, que se foi pela mesma causa. Nove meses depois da sua morte a Legião Urbana lançou um último disco com inéditas, póstumo. A penúltima delas está apenas instrumental, embora tenha letra no encarte. Chama-se Sagrado Coração, e nela um angustiado Renato procurava Deus: “Falam de algum lugar, mas onde é que está? Onde há virtude e inteligência e as pessoas são sensíveis e que a luz no coração é o que pode me salvar. Mas não acredito nisso. Tento, mas é só de vez em quando. Onde está este lugar? Onde está essa luz? (...) Por isso lhe peço, por favor, pense em mim, ore por mim e me diga: ‘este lugar distante está dentro de você’. E me diga que nossa vida é luz. Me fale do sagrado coração. Porque eu preciso de ajuda.”
Das imagens cristãs, a que mais me toca é a do Sagrado Coração de Jesus. Não me refiro a nenhuma pintura ou escultura em específico, mas à imagem de um coração humano vivo pulsando e, a cada expansão, sendo mais ferido pela coroa de espinhos que o aperta. Deixo-me sempre contemplar por essa imagem, sentir cada espinho perfurando o coração a sangrar mais e mais. Fosse apenas humano, creio que o coração pulsaria menos, até pararia, para não ser mais espetado do que já está. Mas o sagrado coração jamais para; ao contrário, ele se expande por amor, como na famosa história de São Filipe Néri: em uma oração, seu coração foi tão alargado pela caridade que teve duas costelas quebradas.
Mas Cazuza e Renato Russo estavam longe da santidade, longe de terem o coração preenchido assim. Mas não estavam longe de rezar pedindo isso, pelo contrário. Ambas as canções são como orações, ainda mais a de Renato, pois, ao não conseguir colocar voz na gravação, apenas seu coração, transformou-a em oração. Graças a Deus a banda percebeu isso e terminou o disco com Travessia do Eixão, música do Liga Tripa que Renato costumava cantar sempre antes dos shows para aquecer a voz e é também uma oração: “Nossa Senhora do Cerrado, protetora dos pedestres que atravessam o Eixão às seis horas da tarde, fazei com que eu chegue são e salvo na casa da Noélia”.
Que ambos tenham chegado sãos e salvos e nós, que ainda estamos nessa travessia da vida, saibamos pedir ao Sagrado Coração, se não tudo, ao menos a consolação de nossas dores. Pois esta é uma de suas promessas explicitada no versículo 28, do capítulo 11, do Evangelho de São Mateus: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei”. E alivia mesmo, inclusive usando essas músicas. Basta ser como a gente que escuta procurando Deus.