Já assistiu ao programa de tevê Brasil visto de cima? Enquanto programa, nem sei se é bom, mas que você descansa a mente assistindo, ah, descansa. E desligar um pouco do Brasil aqui de baixo, convenhamos, é sempre uma boa pedida.
Lembrei do programa na sexta passada, enquanto sobrevoava o país, tendo saído de Curitiba em direção ao norte do Mato Grosso, fazendo conexão em Cuiabá. Não havia país abaixo, apenas um lençol de fumaça compacto e ininterrupto. Só avistei a capital mato-grossense com o avião já bem próximo do pouso.
A situação estava tão feia que o voo para Alta Floresta, que sairia em seguida, foi cancelado, não havia segurança suficiente para o pouso lá. Outros voos que seriam opções para cidades relativamente próximas foram cancelados também. Enquanto isso, o grupo de pescadores… Espera, deixa eu voltar ao aeroporto de Curitiba antes.
Já havia pegado esse voo no ano passado e sabia que encontraria grupos de pescadores indo para a região. Desta vez, havia um grupo grande, em torno de uns 20, cada qual carregando uma caixa de bebida alcoólica. A alegria de criança dos caras era invejável. Nem tinham ido e já estavam com a mente descansada.
Voando de Curitiba a Cuiabá, não havia país abaixo, apenas um lençol de fumaça compacto e ininterrupto
Que importava a manifestação do dia seguinte, 7 de setembro, ou Alexandre de Moraes, ou as eleições, ou o trabalho de cada um? Nada disso existia para eles naquele momento. O Brasil visto de dentro da festa não está nem aí para nada, salvo se inviabilizarem a festa.
Fiquei a me perguntar quantos ali realmente gostavam de pescar, viajavam por esta razão, e quantos, como seria o meu caso se fizesse parte do grupo, estavam indo pela parceria no convescote, para aproveitar a hora do recreio da vida adulta.
No avião, não conseguiam ficar em seus assentos, levantavam, iam conversar em grupos, falavam alto, riam, desimportados de tudo e dos outros. A uma certa altura, literalmente, um deles me apareceu com um violão e começou a tocar e cantar. O rapaz talvez fosse cantor sertanejo, tinha impostação de voz igual, alcançando aqueles agudos rasgados típicos do gênero. Não havia fone de ouvido com cancelamento de ruído que desse conta. O Brasil vivido de cima começava a se parecer demais com o Brasil vivido embaixo. A diferença é que, quando a comissária de bordo pediu gentilmente que parassem, pararam.
No desembarque, cada um saiu carregando suas caixas de Fernet, Aperol, vinho e sabe-se lá o que mais, alegres e gritalhões. Em poucos minutos, estavam todos com garrafinhas de cerveja na mão espalhados pela sala de embarque, o violeiro tocando e cantando de novo, e apareceu também um sanfoneiro.
Ninguém conseguiu escutar direito o aviso de cancelamento do voo, forçando os passageiros a se amontoarem próximos ao representante da companhia aérea para saber o que estava acontecendo, com a frustração dando lugar à indignação e até um princípio de discussão mais acalorada começava. Então, é assim que uma queimada sai do controle, pensei.
O que me fez compreender melhor uma briga feia entre dois linguistas que presenciei anos atrás, no auge da Lava Jato. Foi em um congresso sobre a língua portuguesa. Não lembro ao certo o motivo exato da briga, depois me falaram que na verdade tudo tinha acontecido porque um era de esquerda e o outro, de direita.
Mas na hora a briga supostamente era pela etimologia das palavras Curitiba e Cuiabá. Só escutava um deles berrando (o de esquerda) que, na etimologia de Curitiba, a parte “ritiba” significaria “do mundo”, ao que o outro (o de direita) respondia que o “iabá” de Cuiabá significaria “do inferno”.
Há um símbolo perfeito em tudo isso sobre o Brasil atual, permitindo algumas analogias e metáforas fáceis de se fazer com a situação do país, com sua democracia em chamas inabaláveis
Naquele instante no aeroporto, naquele preciso momento, enquanto a discussão tomava corpo e se ouvia ecoando pela sala: “Sair de que jeito? / Se nem sei o rumo para onde vou / Muito vagamente, me lembro que estou / Em uma boate aqui na zona sul”, eu entendi perfeitamente o que havia de comum entre os dois linguistas.
Enfim, há um símbolo perfeito em tudo isso sobre o Brasil atual, permitindo algumas analogias e metáforas fáceis de se fazer com a situação do país, com sua democracia em chamas inabaláveis. Mas de tão perfeito, tão fácil, tão óbvio, nem é preciso dizer mais nada sobre.
O que me pergunto (e ninguém tem como responder) é: tem solução? Tem como, ao menos, remediar, ou só resta esperar queimar e queimar e queimar até o fogo se cansar? Pensava nisso voltando à origem, Curitiba. Acompanhava a linha do horizonte separando o céu da fumaça, imaginando os pescadores, que decidiram pegar um ônibus de 12 horas para chegar ao seu destino, dormindo de bêbados enquanto o entorno ardia em chamas.
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