Tem livros que não importa se são bons ou ruins, clássicos ou não, cuja leitura impressiona por alguma razão, não de todo clara, deixando marcas mais profundas e memoráveis. São os livros que devemos reler pela vida toda; menos por eles, pela literatura, mas por nós mesmos. A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é um desses livros para mim. O que segue é uma revisão de escritos já produzidos sobre a obra, cuja atualidade permanece.
Thomas Mann nunca foi “apenas” um escritor. Leitura das mais reveladoras é o livro Correspondência entre Amigos, conjunto de cartas trocadas com Herman Hesse. Enquanto Hesse respondia à tragédia de seu tempo como escritor típico, retratando o que vivia e testemunhava, sem maiores ambições, Mann estava cheio delas, assumia-se “porta-voz” da razão, queria esclarecer, orientar, conclamar à ação contra a tirania. Foi dos poucos escritores alemães, por exemplo, a enfrentar publicamente o nazismo; e, enquanto viveu nos EUA, tudo fez para convencer os americanos da necessidade de agirem contra Hitler.
Logo, seus romances, em especial, nunca são “apenas” literatura de ficção, mesclando pensamentos, filosofias, críticas etc., com propósito, digamos, pedagógico. Em A Montanha Mágica, possivelmente sua obra mais conhecida, escrita depois do fim da I Guerra Mundial, temos um narrador que não hesita em explicar (quase) tudo o que está narrando, às vezes em detalhes. Quando não, o contexto nunca deixa margem para muita dúvida sobre o significado do uso de determinados símbolos. Por isso Carpeaux, o grande crítico literário, considerava Mann mais um ensaísta frustrado do que romancista. Além disso, por escrever antes a seus contemporâneos, aos homens daquela época, vivendo naquele contexto, o crítico crê que será um escritor datado, com romances caducos, para usar expressão do mesmo Carpeaux em seu ensaio O Admirável Thomas Mann.
Pode até ser que será, mas ainda não é. Pelo contrário.
I - O Medíocre Exemplar
O tipo mais comum da sociedade daquela época, início de século XX, é representado por Hans Castorp, o “herói” do livro. O narrador conta que ele nada tinha de especial, não era melhor nem pior do que ninguém e, quando criança e adolescente, atendia às exigências escolares e aos deveres sociais, tendo tudo, portanto, para dar certo. Mas o que significa “dar certo”? E isso acaso importa, se parece não haver como dar certo? Deixemos que o narrador nos explique:
“O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço — então se tornará inevitável, justamente entre as natureza mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.”
Sendo inevitável, pouco importa a vida que poderia ter sido e não será, nem foi. Eis o destino, então: a paralisia, primeiro, diante da ausência de sentido e perspectiva na vida, seguida do adoecer na alma e no corpo. É ou não é atual? Sigamos. Ao chegar na montanha, onde fica o sanatório Berghof, Castorp escutou um doente tossir e intuiu, com acerto: “É como se se descortinasse o interior do homem, e tudo fosse lodo e pântano…”. Mais além, escutou um dos pacientes brincando com um revólver dizer que se a consciência começasse a incomodar muito daria um tiro na cabeça e resolveria logo o problema.
Castorp sabia onde estava se metendo. Ainda assim, lá ficou, entregando-se à paralisia, ou seja, à aparente ausência da passagem do tempo no lugar. Não demorou e já nos primeiros dias percebeu o efeito, seu corpo se “descolando” da alma: “eu queria somente dizer que é uma coisa sinistra e penosa ver o corpo levar uma existência própria, independente da alma, e dar-se ares de importância (…)”.
É aí que a “mágica” teve início. O que era “coisa sinistra e penosa” foi se tornando, aos poucos e cada vez mais, algo bom. Castorp passou a enxergar o local com outros olhos, chegando a exaltá-lo, dizendo se sentir mais inteligente só por estar ali. Essa inversão não seria possível sem a influência do psicólogo, o médico da alma no sanatório. Para ele, a doença era um privilégio numa época como aquela, aqueles doentes tinham a chance de resgatar o “amor perdido”. Era com mistificações assim que acabavam romantizando a doença. Foi o que o escritor Settembrini, também paciente ali, percebeu em Castorp, vendo nele uma “tendência a se arraigar no caráter” a de ver na doença uma forma de espiritualização. Decidiu intervir:
“não me fale da ‘espiritualização’ que pode resultar da enfermidade, por amor de Deus não faça isto! Uma alma sem corpo é tão desumana e horripilante quanto um corpo sem alma. A primeira é, aliás, uma rara exceção, e o segundo, o mais comum. Via de regra é o corpo que exubera, açambarca a vida e toda a importância, e se emancipa da maneira mais asquerosa. Um homem que vive enfermo é corpo e nada mais, e nisto está o anti-humano, o aviltante… na maioria das vezes não vale mais que um cadáver”.
Joachim, primo de Castorp e lá também internado, lembrou que o próprio Castorp dissera algo parecido dias antes, o que só confirmou a opinião de Settembrini: “(…) é um diletante do espírito e simplesmente se entrega, à maneira dos jovens talentosos, a experiências com toda espécie de conceitos possíveis.” Não sendo bem sucedido em convencer Castorp a ir embora daquele mundo em que se vivia “na horizontal”, Settembrini tentou assumir, então, o papel do educador:
“Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual já tudo foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamente o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseje manifestar-se…”
Mas foi inútil, como o próprio Castorp confessou mais à frente: “no início a gente se escandaliza e experimenta sentimentos de distância, mas de repente ‘intromete-se qualquer coisa completamente diversa’, que ‘nada tem que ver com o juízo’, e logo se acaba a indignação moral, a ponto de as pessoas se tornarem quase inacessíveis a influências pedagógicas de natureza republicana ou eloquente.”
Essa “coisa completamante diversa” se personificou na figura de Clawdia Chauchat. Embora, no início, Castorp a odiasse, achando-a vulgar, mal educada e irritante, quanto mais se entregava àquela vida, mais invertia o sentido de tudo, acabando por se apaixonar por Clawdia, ou seja, passou a amar a doença. Daí em diante temos um mergulho no irreal, no mágico mundo dos prazeres sensoriais, nas enfermidades “dignificantes” do corpo e a busca de respostas no inconsciente, maneira eficaz de nunca se tornar responsável por nada.
Sobre Castorp, no fim das contas, vale a impressão de outro médico do lugar, o médico do corpo, Behrens. Ao ver que ele se entregava voluntariamente à doença, não teve dúvida em acusá-lo: “O senhor é uma espécie de covarde e de hipócrita, meu caro (…). O senhor quer me importunar e maçar, para que eu o confirme na sua maldita hipocrisia e para que o senhor possa dormir o sono dos justos, enquanto outras pessoas velam e se expõem à tempestade.”
Hoje, há epidemia de Hans Castorp.
II - Diagnosticando a Doença
Quem seria melhor? O próprio Behrens, é claro, considerava-se um. Mas sem sucesso. Seus tratamentos não surtiam efeito e, em vários casos, a medicação acabava por justificar a paralisia, tornada invalidez. Settembrini se achava outro, apesar de ali estar tão doente quanto. A seu lado, disputando o posto de educador do medíocre Castorp, estava Naphta, o padre jesuíta. Por conta disso, travaram inúmeros debates nos quais aos poucos foram revelando seus ideais e valores. Settembrini amava o progresso material, o avanço tecnológico, sendo individualista ferrenho, liberal e burguês, também positivista, acreditando no poder do homem de comandar todas as coisas, daqueles “humanistas” com fé na salvação do homem pelo homem. Naphta, por sua vez, apesar de padre, estava longe de representar a tradição cristã, travestindo nessa roupagem um discurso comunista, socialista, antecipando em décadas o que viria a ser a teologia da libertação.
Sabemos que nenhum deles conquistou a mente e o coração de Castorp, falharam como Behrens. Mas seu fracasso tem outra função pedagógica no romance. Acompanhando suas discussões, a uma certa altura vemos que suas vozes começam a se confundir, a tal ponto que já não sabemos quem defende o quê, quem era quem. É aqui que a montanha mágica de Thomas Mann começa a revelar o seu arquétipo: a bíblica Torre de Babel. Não por acaso construída depois de um período de progresso da humanidade, a história da Torre de Babel é a história de uma sociedade presunçosa com suas conquistas, crendo ser capaz de chegar aos céus por conta própria, sem precisar de Deus. Naphta e Settembrini, ao se confundirem numa língua só, são como faces da mesma moeda. O arquétipo nos fornece, então, um diagnóstico. A doença é espiritual, sua causa a presunção orgulhosa.
Mais para o fim do livro surge a figura dionisíaca do alcoólatra Peeperkorn, já idoso, ainda dotado de um forte carisma encantando a todos e que lá se suicidará. Três símbolos são usados de maneira significativa aqui. Primeiro, a águia, rainha das aves, símbolo da força do Espírito, de Deus. Em um passeio, Peeperkorn foi a único a percebê-la, chamando a atenção dos demais. Pediu, então, que ela descesse e cravasse suas garras na cabeça e nos olhos do homem. A cabeça é símbolo do Espírito manifestado no homem, enquanto os olhos simbolizam sua percepção intelectual, a intuição da verdade. O contexto, portanto, não deixa dúvida: trata-se de uma consciência desperta, logo, culpada, clamando por uma punição que sabe ser merecida.
Mas o orgulho não é o pior dos pecados por acaso. É a raiz de todos e seu senhor, pervertendo todo bem. A consciência culpada, se não leva à humilhação de ajoelhar-se implorando o perdão de Deus, leva ao desespero da impossibilidade de qualquer perdão, inclusive o próprio. Assim, só pode restar ao soberbo julgar a si mesmo, sempre se condenando, aplicando punição por conta própria. A culminação do orgulho, sua realização final, é a recusa renitente da misericórdia, do amor divino. É o caso aqui.
Por isso, a resposta do Espírito a Peeperkorn, simbolizada pela cachoeira — o segundo símbolo — diante da qual ele fez um discurso inaudível, é mais clamorosa ainda. Se a montanha simboliza o movimento ascendente do homem ao espírito, a cachoeira é o movimento descendente da atividade celeste. Assim, o fato de o discurso ter sido inaudível se deu menos pelo que nele se disse do que pela força das águas que o calaram. Deus não dá ouvidos aos soberbos, somente aos arrependidos de coração, sinceros e humildes. Só a verdade liberta.
Daí a vitória do orgulho, simbolizada no terceiro símbolo, o da serpente, a naja com cujo veneno Peeperkorn se matou. Vale ressaltar o fato de Thomas Mann trabalhar aqui com os símbolos da águia e da serpente juntas no mesmo contexto. São inimigas simbólicas, significando a luta entre anjos e demônios, o Bem e o Mal. Sendo um alcoólatra, o veneno da naja nada mais foi do que seu último gole. A serpente, portanto, significa aqui a derrota do homem para si mesmo, seus vícios e imperfeições, não havendo maior do que o orgulho que a todos os outros maneja e alimenta.
Peeperkorn, assim, condensa o destino de todos os internados no sanatório. Todos estão, aos poucos, se matando. A obstinação no orgulho que torna a doença algo bom, a obstinação no orgulho que torna irreconciliáveis as aparentes diferenças ideológicas que continuam a nos formatar ainda hoje, a obstinação no orgulho que nos faz escravos e carrascos de nós mesmos. Com isso, o simbolismo do sanatório construído na montanha mágica ganha todo seu significado.
A montanha, como símbolo, tem significado mais comum ser, justamente, a morada dos deuses e objetivo da ascensão espiritual humana. No romance, como toda a história já se passa lá, não temos uma história de ascensão, ou algo como um típico “romance de formação” alemão. Não, a “formação” já foi feita e ali temos seus frutos: paralisia, doença, “lodo e pântano”. Para lá os doentes não sobem para chegar a Deus, muito menos destroná-Lo. Não, para lá se vai em busca de cura, que não sendo do nosso orgulho, só pode ser Dele, no fim das contas. Por isso, uma coletividade de orgulhosos nada mais é do que um ajuntamento de demônios. Não à toa Settembrini é apresentado no capítulo intitulado “Satã”, enquanto Naphta em “Mais Alguém”.
Hoje, Naphtas e Settembrinis são uma legião, mas a multidão de Peeperkorns é maior, preferindo morrer de prazeres e distrações.
III - O Trágico Thomas Mann
Temos, por fim, um último símbolo, fechando o romance: o trovão anunciando tempestade. Símbolo da ira divina e anúncio de Sua justiça próxima, como Mann enxergava, portanto, a eclosão da Primeira Grande Guerra. Como no arquétipo, à queda precedeu a confusão de línguas, simbolizada nos debates entre Naphta e Settembrini, cujo resultado seria/foi a guerra, simbolizada no duelo entre ambos, fatal para Naphta.
Mas como toda punição traz consigo também possibilidade de purificação, de cura, daí tudo terminar com uma pergunta, que não deixa de ser uma esperança: “será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”
Mas que é o amor? Do que se está falando? Assim como antes o psicólogo do sanatório se referiu ao “resgate do amor”, sem dizer o que realmente entendia por isso, também aqui o narrador o usa como se não precisasse dizer mais. Mas para quem explicou tanto, detalhou tanto, não convence deixar isso em aberto. Talvez Carpeaux tenha razão ao dizer que Thomas Mann, na realidade, não acreditava na cura, apesar de todos os seus esforços por ela. Mas talvez signifique justamente sua luta por manter a esperança quando nada parece justificá-lá. O que torna Thomas Mann também uma figura simbólica de seu tempo, do nosso tempos, tão trágica quanto seus personagens, com muito a nos dizer e ensinar.
Não é difícil imaginar como seria se Thomas Mann fosse escrever seu romance hoje. Depois de gerações nascendo e morrendo na Montanha Mágica, nem mesmo percebemos que padecemos de uma doença espiritual. Fizemos dela nosso estado normal, tanto que o sanatório onde a história se passa, que existia de fato, tornou-se um hotel. Do Espírito, que se tornou palavra espírita, sobrou o que parece nos fazer felizes, magicamente felizes, ainda que nos mate. Daí porque coisas como o aborto se tornaram aceitáveis. Hoje, toda forma de amor é válida, ainda que homicida.
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