Conversava com um amigo das antigas. Em meio às reminiscências do passado, comentou sobre uma coluna recente que escrevi, sobre me sentir um adolescente diante do que vivemos hoje, com aquele cansaço do medo que facilmente confundimos com coragem, mas é só a antessala da temeridade.
Ele ficou a pensar sobre, como não suporta mais as discussões estúpidas sobre vacina, por exemplo, perguntando-se como agir, o que fazer etc. Também não sei, mas sei que ao menos não alimentar a loucura deve servir de alguma ajuda.
Chegamos à conclusão de que nossa época é que é adolescente, como uma infindável final de campeonato contra o maior rival e não há lugar onde possamos ficar que não seja em meio a uma torcida organizada. Você acha que nessa condição tem razoabilidade e bom senso para achar que o juiz não está roubando ou reconhecer que o adversário “tem razão” em algo?
A arte é como um espelho no qual reconhecemos nossa realidade sem se deixar incendiar por ela, conduzindo nossas emoções de forma, digamos, segura, permitindo catarses sem consequências e com isso lapidando nossa sensibilidade
Não enquanto o jogo não termina. Como não parece que terminará nos anos vindouros, seguiremos nessa perene tensão entre o medo, a raiva e o cansaço, precisando de constantes válvulas de escape para tornar tudo suportável. Haja bodes expiatórios, cancelamentos e “detox” de redes sociais, noticiários, discussões e por aí vai.
Aí insisti no valor de se refugiar na arte. Em literatura, cinema, música. Não como fuga da realidade, mas como um distanciamento necessário “do jogo”, sem o que é impossível enxergar o jogo melhor. Porque a arte é como um espelho no qual reconhecemos nossa realidade sem se deixar incendiar por ela, conduzindo nossas emoções de forma, digamos, segura, permitindo catarses sem consequências e com isso lapidando nossa sensibilidade.
A arte permite desafogar nossa raiva, por exemplo, sem destruir nada nem ninguém. Dei o exemplo da música de Sam Fender. Não tem mais idade para ser adolescente, fará 28 anos neste ano, mas suas letras são todas da época de quando era um, especialmente no seu último disco, 17 Going Under, considerado o melhor do ano passado pela revista NME e que vem alcançando grande sucesso, com a música cujo nome dá título ao álbum já sendo tocada em rádios “comerciais” (restou alguma que não seja?) até aqui no Brasil.
Neste disco, fruto da impotência gerada pela pandemia, Sam mergulhou na sua adolescência, ganhando distanciamento suficiente para se entender melhor: “Eu carregava muita dor, e compondo sobre fui capaz de superar algumas coisas – o que tem me dado muita humildade e sido bom para a alma”.
Basta você assistir a um clipe, uma entrevista, um show de Sam para entender perfeitamente a relevância dessa humildade. Sua expressão corporal (ainda) é a de um adolescente orgulhoso, ou seja, com raiva, cara de poucos amigos, na defensiva do mundo, mas pronto para brigar à menor provocação.
Essa raiva é tema constante nas músicas; na que dá título ao disco, canta: “Essa é a coisa com a raiva, implora para ficar por perto / para esfolá-lo de sua beleza / E deixá-lo sem nada para oferecer / Fazendo você machucar aqueles que você ama”.
A arte permite desafogar nossa raiva sem destruir nada nem ninguém. Um exemplo é a música de Sam Fender
Sam passeia por suas frustrações adolescentes, falando dos relacionamentos falhados, da depressão, da tentação do suicídio e do suicídio de tantos jovens da sua idade, da falta de perspectiva na vida, da incompreensão de professores e adultos, do bullying sofrido, da música como única companheira. Tudo no estilo mais propício para a catarse de adolescentes: o rock.
Escute, por exemplo, Get You Down, a mais pessoal das letras, segundo o compositor, e sinta como a raiva vai sendo expulsa à medida que você se entrega à levada da guitarra e do crescendo da música: “Nunca revidei / Apenas fiquei lá, humilhado / Do pátio da escola para casa / Nas ruas por onde vagamos / E agora eu te derrubo / E me pego em um espelho / Veja um patético menino / Que veio para te derrubar”.
Se você achou parecido com as músicas de Bruce Springsteen, acertou na mosca. Sam é fã do The Boss e claramente nele se modela, sem deixar de ser autêntico e inovador. É a razão, aliás, para eu tê-lo conhecido, pois Bruce é dos preferidos da casa aqui. Por isso, escutar Sam é nostálgico para mim, fazendo-me reencontrar o adolescente que fui.
Mas escutar essas músicas também ajuda a lidar com a reação adolescente ao que vivemos hoje, pois a raiva também foi direcionada para os tempos que vivemos, como na certeira Aye: “É um jogo de culpa, é uma armadilha da fama / É o martírio dos que falam / É o último suspiro dos despertos / E os jovens ‘woke’ são apenas idiotas / E os idiotas são de todas as idades”.
Escutar essas músicas também ajuda a lidar com a reação adolescente ao que vivemos hoje, pois a raiva também foi direcionada para os tempos que vivemos
Os “woke” são os canceladores que abundam na torcida organizada dos progressistas. Mas não se engane, Sam Fender não é da torcida adversária ou algo assim. Politicamente está mais à esquerda, mas sua raiva é contra as duas torcidas, é um f***-se para tudo e todos. Muitos, aliás, o consideram niilista por isso. É um equívoco, é apenas um piá de saco cheio de esquerdistas e direitistas, conservadores e progressistas, políticos e influenciadores.
De saco cheio de tudo e todos, não querendo mais fazer parte dessa palhaçada que vivemos hoje, como termina cantando em Aye: “Eu não sou mais um maldito patriota / Eu não sou mais um maldito cantor / Eu não sou mais um fodido liberal / Eu não sou nada nem ninguém”.
“Não sei você, mas minha fase é 100% esta”, disse ao meu amigo depois que escutamos essa música. E ele, sorrindo, respondeu: “I’m ready to grow young again. No retreat, baby, no surrender”. Entendedores entenderão.
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