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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Na pauliceia desvairada

“E na medida do impossível tá dando pra se viver”

Vista da cidade de São Paulo. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Quando Criolo canta que não existe amor em SP, sempre acho que está falando, na verdade, da falta de beleza, que é a aparência da presença do amor. Como parece difícil encontrar beleza na cidade de São Paulo, não? Refiro-me à beleza que não precisa ser procurada, que se apresenta ao olhar sem esforço, ainda que imperfeita, como acontece quando chegamos ao Rio de Janeiro, cidade que tem mais problemas que São Paulo e, no entanto, é naturalmente bela.

Claro que há respiros de beleza em “Sampa”, como uma flor escapando em meio a algum muro de concreto pichado, ou alguns oásis feitos de ruas ou pracinhas arborizadas e tranquilas, “perdidos” em meio ao caos de ruídos e impaciência. Estive lá na última segunda-feira e a luz do inverno dava tons de beleza até ao verde cansado dos matos nas beiradas das vias marginais por onde todos passam e ninguém para.

Quando Caetano Veloso cantou que quando chegou por ali ele nada entendeu, compreendo o que quis dizer. Mas a dura poesia concreta daquelas esquinas todas, não apenas da Ipiranga com a Avenida São João, combina bem pouco com a Sampa caetânica; tem muito mais a ver com a música urbana das quebradas, como a dos rappers Racionais MCs e Sabotage, por exemplo. São Paulo está muito mais em Fim de Semana no Parque, com Mano Brown dizendo: “Malicioso e realista sou eu, Mano Brown / Me dê quatro bons motivos pra não ser / Olha meu povo nas favelas e vai perceber”.

Quando Criolo canta que não existe amor em SP, sempre acho que está falando, na verdade, da falta de beleza, que é a aparência da presença do amor

Também o rock, especialmente o punk, retrata melhor essa dureza de viver em São Paulo. Lembro de Pobre Paulista, do Ira, e o hino São Paulo, da banda 365, em que se canta: “Sem São Paulo o meu dono é a solidão”. O pior tipo de solidão, a que se compartilha em trombadas de ombros pelas calçadas, no cansaço aglomerado em vagões de metrô, nos olhares desviados pela pressa e pelo medo, no barulho incessante que, se no início atordoa, com o tempo se torna a única companhia, quase uma amizade.

Quando me deslocava do aeroporto de Congonhas para a região da Avenida Paulista, na hora do rush matinal que triplica o tempo de tudo, fui procurando mais uma vez encontrar a beleza que acho tão difícil de ser percebida na cidade. Mesmo já estando com o olhar de cronista bem treinado (afinal, são seis anos escrevendo semanalmente por aqui, sem intervalo nem férias, praticamente um paulista), nem mesmo os detalhes que já citei, que sempre são o coração de toda crônica, significavam o suficiente.

Talvez seja isso: não é que não exista beleza em SP, é que parece sempre insuficiente. Daí não conseguir consolar, daí porque Criolo via os bares cheios e achava que as almas estavam vazias. Mas, será? Talvez estejam tumultuadas demais, isso sim. É difícil silenciar em SP. Sem silêncio a solidão se torna isolamento, mesmo em meio à multidão. Sem solidão verdadeira todo encontro humano se torna distração, não comunhão. Lembrei de Tom Zé, o mais paulista dos tropicalistas, que cantou em Augusta, Angélica e Consolação: “Que o Largo dos Aflitos / Não era bastante largo / Pra caber minha aflição, / Eu fui morar na Estação da Luz, / Porque estava tudo escuro / Dentro do meu coração”.

Ao voltar para o aeroporto, agora de Guarulhos, o fedor do Rio Tietê era impossível de ser disfarçado. Ainda assim, era possível avistar estrelas. Estaria alguma coisa acontecendo no meu coração? Desde de manhã, na verdade, quando cheguei, algo acontecia. Mesmo vendo o centro tomado por mendigos e noiados, mesmo escutando o desalento dos motoristas e outros moradores locais com a violência, mesmo com o cheiro de urina misturado com maconha de várias ruas no entorno da Augusta, mesmo assim e com a insuficiência de beleza, aquela luz de inverno a tudo venceu pela manhã e o espantoso silêncio do sexto andar onde passei a tarde transfigurou a pauliceia desvairada numa Jaçanã bucólica que não faço ideia de onde fica, mas aonde sei chegar se pegar o trem até as 11 horas.

Acho que o que acontecia era perceber que São Paulo é grande demais até para o caos, daí tudo parecer insuficiente. Mudar a perspectiva faz toda a diferença. Agora, cabe nela a Sampa caetânica, que se pode curtir numa boa, assim como encontrar, para além da dureza do rap nas periferias, a leveza do pagode renascido na década de 90, como em Cohab City, do Negritude Jr. (cujo cantor, aliás, aparece no fim de Fim de Semana no Parque), e até mesmo uma serenata sertaneja, como em Luzes de São Paulo, de Fernando & Sorocaba (cujo vídeoclipe, aliás, é legal e faz um contraste necessário à tristeza de Não Existe Amor em SP). Mas Caetano tem razão, nada traduz São Paulo melhor do que Rita Lee, que cantou em Lá Vou Eu: “E na medida do impossível / Tá dando pra se viver / Na cidade de São Paulo”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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