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Estive no Rio dias atrás, passei pela Praia de Botafogo algumas vezes. Era por ali teu refúgio, não era, quando morou lá? Ou era na do Flamengo? Era um banco de praça pouco frequentada, com vista para o mar? Ou talvez algum canto na praia mesmo, imprópria para o banho, mas não para a meditação.
Perguntei aos amigos se sabiam onde ficava, se sabiam que você tinha aquele refúgio. Mas, se sabiam, não sabiam. Restou-me procurar pelas areias, pelo entorno onde alguns se exercitavam, mas nenhum fazendo o que você fazia, com o olhar perdido no horizonte, provavelmente fumando, certamente chorando.
Não chorei, não fumo, mas gosto de pensar que reencontrei teu olhar ali. Esse olhar que transbordava de desespero no passado, nublado de raiva, mas que, da última vez que o vi, antes de você morrer, sorria de gratidão, embora entristecido por não poder receber os tantos abraços de parabéns, como você desejava e merecia. A grana estava curta, sempre foi, mas nunca faltou a Graça, né, Sarah?
Quem dera o luto tivesse uma pomba a anunciar o tempo de cada coisa
Faz um ano que você e Bernardo se foram naquele dilúvio em Petrópolis. Por “magnólia” (piada interna, leitor intrigado, piada interna, mas assista ao filme Magnólia, se quiser entender), na liturgia de hoje, dia 15, a primeira leitura foi sobre Noé tentando descobrir se o dilúvio havia terminado, se a terra voltara a permitir ser habitada, se a fé e a esperança receberiam sua recompensa.
Li com o coração do luto, essa arca de vida ilhada num oceano de morte que nunca seca, porque os falecimentos vão se sucedendo, os lutos se acumulando... Fiquei a meditar nisso, como se estivesse na praia de Botafogo ou Flamengo, contemplando a paisagem, pensando que depois que entramos na arca do luto não parece possível dela sair.
Na primeira vez que Noé soltou uma pomba para descobrir se era possível sair da arca, ela retornou indicando que não era a hora, não havia onde pousar. Na segunda, voltou com um ramo de oliveira no bico. Havia mais do que terra novamente, havia vida. Mas Noé ainda não estava pronto. Na terceira vez a pomba não voltou, significando que já passara da hora de ele voltar à terra.
Quem dera o luto tivesse uma pomba a anunciar o tempo de cada coisa: o do apocalipse zumbi, o do suportar e sobreviver, o do reconstruir sem sentir culpa, o da vida nova sem esquecimento, com a saudade transfigurando a perda como presença do verdadeiro amor, agora experimentado como imortal e eterno. Quem dera...
Uma pomba, Sarah... Bernardo está rindo aí, né? O “professor pombo” que foi a maior Graça de Deus na sua vida. Porque você deixou, permitiu que a Graça entrasse, contrariando tudo que acreditava no passado a mulher empoderada que você era.
Aliás, vocês eram os típicos homem e mulher dos tempos atuais. A empoderada que dá conta da vida no que decide assumir, não precisando de homem algum para nada, mas, quando a solidão doía, o vazio revelava a menina que ainda era, procurando o abraço, o colo consolador que não havia. E o menino tentando ser homem, realmente tentando, enquanto se culpava por sentir que a conquista da maturidade não deveria ser tão difícil, como uma batalha épica, ainda mais vendo em você alguém que venceu essa guerra sem parecer precisar de tanto esforço.
Vocês formaram um lindo casal, o exemplo que esses tempos precisam, (re)construindo-se um no outro, tornando-se uma só carne, tanto que morreram unidos, no mesmo instante
Ninguém diria que vocês combinariam, mas Bernardo teve a ousadia de tentar, e você, a humildade de se permitir. Formaram um lindo casal, o exemplo que esses tempos precisam, (re)construindo-se um no outro, tornando-se uma só carne, tanto que morreram unidos, no mesmo instante.
A vida não andava nada fácil, eu sei. Bernardo não era o tal do “homão da porra” que tantos querem ser e tantas desejam ter. Mas toda vez que eu te provocava para saber o quanto não se ressentia disso, você me quebrava as pernas com seu amor por ele. Ele tinha o abraço que você precisava, Sarah, e o dava o tempo todo, mesmo quando você não pedia. Que homem...
No Evangelho do mesmo dia, algumas pessoas levaram um cego para Jesus curar. Um comentário comum dos padres sobre isso destaca a importância de sermos gratos por aqueles que Deus usou como instrumento de sua Graça, que nos levaram para a cura. Sei que vocês foram isso um para o outro. Sei também que fui um deles na vida de vocês, assim como vocês foram na minha, e continuam sendo, até mais do que antes.
Os Padres da Igreja, comentando a cura do cego, destacam a importância de sermos gratos por aqueles que Deus usou como instrumento de sua Graça, que nos levaram para a cura
Lia o livro de conversação entre Nick Cave e Seán O’Hagan, Fé, Esperança e Carnificina. A certa altura, falando do luto, Nick disse: “Não quero que você entenda mal o que estou dizendo, mas pode haver um tipo de mórbida adoração de uma ausência. Uma relutância de superar o trauma, porque o trauma é onde reside aquele que você perdeu, e portanto o lugar onde o sentido existe”.
Entendo perfeitamente o que ele quis dizer e no que me examinava, perguntando-me quão mórbido eu seria, você atravessou meu pensamento, Sarah, sorrindo, pegando-me pela mão e me fazendo ver que eu já estava fora da arca, onde o sentido existe também, tanto quanto dentro, por onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá. E sorri, lembrando do momento em que, pela janela do carro, vi no céu do Rio de Janeiro dois pombinhos sobrevoando o mar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos