| Foto: Aline Menezes com Playground AI
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Era feriado do lado de fora do boteco. Luizito ignorava, como todos os feriados que não eram santos. Um calor estranhíssimo para o outono curitibano me obrigou a procurar abrigo, dando uma pausa numa caminhada sem rumo.

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O boteco estava cheio, as duas mesas de plástico azul do lado de fora estavam ocupadas pelos sócios remidos, enquanto as três de madeira do lado de dentro serviam de apoio aos copos, rodeados pela clientela rotatória de filósofos, diplomatas e bachareis, todos de pé.

Encostei-me no balcão, cumprimentando o Luizito, já tombado pelo patrimônio etílico do lugar. Minha vontade era de pedir a Wimi da infância, da época em que voltava de ônibus dos treinos de handebol da escola e, antes de subir uma ladeira íngreme e longa, me refrescava, repondo a energia com a garrafinha de refrigerante de tinta laranja. Mas fiquei com vergonha, decidindo ser, em Roma, como os romanos. Pedi a especialidade da casa e uma ampola de diurético.

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Dona Márcia estava toda atrapalhada servindo os rollmops e tentando dar conta das porções de lambari, enquanto Luizito não deixava os copos secarem. Entre um gole da especialidade e outro da estupidamente gelada, entreouvi a conversa do grupo de diplomatas mais próximo. Discutiam quem teria sido o maior piloto brasileiro de F1 de todos os tempos, motivados pela data: os 30 anos da morte de Senna.

Um deles explicava que Senna não tinha apenas bom braço, mas era kamikaze, jamais tirava o pé e, nas disputas, sempre deixava que o adversário decidisse o destino do duelo. Ou freava e deixava Senna seguir na frente ou ambos batiam. Alguém replicou lembrando da famosa ultrapassagem de Piquet sobre Mansell, por fora da curva.

Não demorou e todos estavam contando do quão inesquecível foi o dia da morte, que lembraram em detalhes onde estavam, como reagiram. É curioso que o mesmo acontecia nos grupos de WhatsApp que participo, inclusive com quem era muito criança na época, mas que foram profundamente marcados pelo fato, lembrando de seus pais e tios.

Enquanto me recordava daquele dia, que acordei depois do acontecido, e demorei horas para acreditar, a conversa virou uma discussão acalorada dividindo "piquetistas" e "sennistas", tendo um senhor de cabelos brancos, o único sentado, apoiando as mãos numa bengala marrom-bordô impecável, interrompendo a todos: “É porque vocês não viram Fittipaldi!”. A discussão se encerrou, deixando um silêncio que preenchi com um sorriso.

Contemplava as prateleiras do lugar, das garrafas aos cacarecos das antigas, sentindo-me guardado em conserva. Já não importava mais que horas eram, não eram horas de mais nada

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Luizito já me servia a segunda ampola, sem eu precisar pedir. Não sou o Chico Advisor, mas sei que em botecos nada conta mais pontos do que isso. De repente, alguém fala mais alto, com sarcasmo: “E o show da Madonna?”

- Morreu faz tempo!

- Morreu nada, vai fazer show em Copacabana no sábado!

- Morreu, garanto pra você.

Foi como apito de cachorro, todas as mesas se tornaram uma, com um debate acalorado a respeito. Alguém sacou do celular uma reportagem de última hora, com fotos da senhora na janela do hotel. O que insistia que ela tinha morrido pediu para ver de perto. Ao ler a reportagem, encerrou a discussão de forma triunfante:

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- Show sem banda, com playback. Isso daí é show Tio Paulo, até ele cantaria assim…

A partir dali o debate se encerrou, dando lugar a uma competição de memes verbais impublicáveis fora daquela Academia. Foi quando notei, na mesa mais distante, um senhor alto, magro, quase careca, dominando a conversa. Contava da vez que quase foi demitido da escola, em que dava aulas, por ter se recusado a mudar a data de sua prova por causa do primeiro show da Madonna no país, que aconteceria em São Paulo.

Não era possível, não estava acreditando, fiquei estupefato. Era o professor de química, Maurício! Voltei no tempo com toda força, naquele 1993, lembrando bem daquelas várias alunas implorando para mudar a data da prova porque na agendada estariam viajando para o show. Mas ele se recusava, com certo sadismo. Lembro de acompanhar o entrevero me divertindo, mas, ao mesmo tempo, compadecido, afinal, se fosse um show do Guns era eu quem estaria ali suplicando.

Eu gostava do professor, apesar de temê-lo. Ensinava bem e tinha algo que eu admirava: seu fusca azul. Era inconfundível, por ser único na escola. Sabíamos quando ele estava chegando e saindo pelo ronco do motor quando acelerava - e ele gostava de acelerar. “Mas ele não havia morrido?” Havia, sim. Não havia? Procurei confirmar pelo celular, google etc., mas não consegui. Levantei a cabeça, procurando-o, mas não o vi mais.

O motor roncou calando o boteco. Todos olhamos para fora, vendo passar a toda velocidade uma mancha azul refletindo a luz inclemente do sol, com um braço para fora, pelo lado do motorista, segurando uma bandeira do Brasil. E sem saber de onde vinha, todos escutamos o tema da vitória, como se fosse uma oração.

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Pendurei a conta, seu Luizito me conhece bem, e voltei para casa, notando que a máquina do mundo não se recompunha, nem miudamente, enquanto eu, avaliando o que ganhara, seguia vagaroso, coração ao alto.