Quando li algumas das críticas negativas a Soul, animação mais recente da Pixar lançada no Disney+, fiquei intrigado. Que essas animações miram um público também adulto, não é novidade, mas daí a isso ser visto como algo ruim, acho que foi algo inédito.
As críticas foram no sentido de que seria complicado demais para as crianças entenderem o filme pela temática metafísica. Como tinha assistido com meu caçula de 9 anos que não viu problema, não exigiu explicações e se divertiu como sempre, fiquei a pensar se essa dificuldade, na verdade, não seria desses críticos. Não de entender o filme – que é autoexplicativo, basta assistir sem ficar mexendo no celular –, mas uma dificuldade de aceitar a premissa metafísica que dá sentido a tudo na história.
Como aceitar que o “mero nascer” bastaria como “missão”, como se tanto fizesse o que fizéssemos da vida?
(Aviso que virão spoilers, então, caso não tenha assistido ao filme, esteja avisado)
E não aceitam não porque discordam da premissa, mas porque recusam a própria possibilidade metafísica. Ver o protagonista, Joe Gardner, morrer e não ser o seu fim, com ele indo para um “além-vida”, daí de lá “caindo”, passando por vários níveis cosmológicos para chegar ao “pré-vida”, onde as personalidades seriam formadas antes de nascerem, fazendo com que a vida na Terra não seja mais do que um daqueles níveis cosmológicos, em que nossa “temporada” por aqui estaria quase que inteiramente determinada por aquele “pré-vida”, é demais para quem só tem fé num suposto humanismo cujo deus seria a total liberdade para descrer de tudo que não seja a sua liberdade de se autodeterminar.
Só pode ser incômodo para quem crê que, mesmo nascendo com pênis ou vagina, isso não significa definição alguma, acompanhar naquele “pré-vida” praticamente toda a personalidade humana sendo definida por outra coisa que não seja a própria pessoa. Mais do que isso, quando avançamos na história vemos que até a “missão” nesta vida, aquilo que teríamos de fazer, o que daria sentido para a existência, nossa vocação, não é o que parecia, tendo menos a ver com uma conquista que com uma aceitação. É “destino” demais para pouco livre arbítrio.
Para quem pensa assim, ou o filme causa efeito análogo ao que aconteceu com Joe Gardner no fim ou será incompreensível mesmo. Porque até então Joe estava obcecado com o que ele queria fazer. Todo o seu critério para avaliar se sua vida tinha sentido, se era feliz, era a realização como músico de jazz. Qualquer outra coisa era vista como desperdício, fracasso. Daí seu sentimento de injustiça quando morreu justo quando parecia que realizaria sua “missão”. Mas aí, no fim, quando de fato realizou o que queria, ficou frustrado porque não era o que esperava. Começou, então, seu processo de “conversão”, caindo a ficha de que a “missão” era outra coisa, era o que a alma jovem, a 22, havia descoberto no seu tempo de vida na Terra: a missão é o próprio existir.
É aqui que a “premissa metafísica” se impõe; afinal, como aceitar que o “mero nascer” bastaria como “missão”, como se tanto fizesse o que fizéssemos da vida? Mudemos de metafísica por instantes. Pense em Adão e Eva no jardim do Éden. O que eles faziam por lá enquanto “missão”? O que Deus lhes pediu foi mais uma inação do que outra coisa. Sua “missão” estava em participar da criação em condição privilegiada. Tire Deus e a vida no Éden perde todo o sentido, transformando o casal em meros nudistas em férias. Da mesma forma, retire o “pré-vida” e o “além-vida” de Soul e a “missão” descoberta pela 22 não é mais do que uma viagem lisérgica do hippie virador de placa ou qualquer coisa egoisticamente buscada de forma obcecada, que é o que as “almas perdidas” faziam.
No “nível cosmológico” das almas perdidas, lá estão todos aqueles que deixam de participar da existência para transformar a sua própria na única existente. O exemplo do filme é o workaholic tocado na alma pelo hippie, que de repente desperta e percebe a insensatez de gastar a vida sem de fato vivê-la. Joe Gardner não tinha esse tipo de obsessão, mas estava obcecado tanto quanto por se tornar um músico de jazz. Daí porque, saindo do ensaio no dia do show que seria seu grande momento na vida, ficou tão deslumbrado consigo que não prestou atenção em torno, quase morrendo várias vezes antes de, por desatenção, cair num bueiro e morrer.
Quando Joe voltou com a 22 para tentar recuperar seu corpo e, enfim, realizar seu sonho de tocar na banda de jazz, passou por uma odisseia na qual, através do maravilhamento da 22 diante da existência, foi redescobrindo o que é viver. Primeiro, com o barbeiro, quando enfim lhe deu ouvidos, descobrindo que ele só parecia fã de jazz porque, como barbeiro, ia além do corte, tornando-se quase um terapeuta conversando sobre aquilo de que o cliente gostasse. E aí Joe ficou sabendo, graças à 22, a história da vida do barbeiro, que parecia nascido para aquilo, mas na verdade ali foi parar por uma aparente “derrota” na vida. Ou seja, se o barbeiro só visse sua “missão” na vida como aquilo que gostaria de fazer, jamais conseguiria ser o barbeiro que era. Ou seja, era o oposto de Joe, que só poderia ver fracasso no sucesso do barbeiro.
Soul é autoexplicativo; a dificuldade dos críticos parece ser a de aceitar a premissa metafísica que dá sentido a tudo na história
Mas é só depois de Joe ter se frustrado com sua realização como músico de jazz que a ficha caiu de verdade, quando, sentado diante do piano, mirou a herança “inútil” da 22 e começou a compor com base nas experiências dela, descobrindo que a música era seu canal de conexão com o transcendente, capaz de conduzi-lo àquele nível cosmológico entre o material e espiritual, a que também se pode chegar por outras vias, como a meditação, a oração, e que no fim das contas é nossa “missão” nesta terra: manter esta conexão ou recuperá-la uma vez perdida, bastando, para tanto, voltar a prestar atenção na criação, contemplar sua beleza de simplesmente ser, existir, ao que levará à conclusão de que viver é algo bom. É o que a 22 descobriu, decidindo aceitar sua “missão” de nascer e participar da vida material que, por sua vez, é apenas parte de outra muito maior que lhe dá sentido e significado.
Em Soul não se fala de Deus, ou de alguma religião, mas da existência dessa realidade espiritual maior que nos dá forma e conteúdo, essa realidade da qual a Modernidade foi aos poucos se afastando, transformando em superstição até cancelá-la, com a consequência óbvia que isso traz, trouxe, que é desorientação e falta de sentido da vida. Uma realidade que, quando redescoberta, maravilha, comove e, por isso, consola. É exatamente isso que a transformação de Joe Gardner, no final de Soul, causa no espectador.
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