Se você viveu sua infância e parte da adolescência nos anos 80, assistir a Stranger Things é quase irresistível, diria até ser obrigatório. É impossível não ter ali uma referência a algo da época que você não reconheça ou de que não gostasse. Nostalgia na veia. Mas se fosse apenas isso, apenas nostalgia apelativa, seria tão descartável quanto quase tudo dos anos 80 e não interessaria a mais ninguém salvo as viúvas dessa década – como eu. Ainda bem é mais do que isso, bem mais. Se a primeira temporada valeu mais pelo entretenimento, a segunda, recém-lançada, alçou a série a algo maior e melhor: uma digna obra de arte.
A habilidade dos irmãos Duffer em contar uma história em série, e não como num filme, permite experimentarmos o melhor que um seriado pode proporcionar: uma vivência tripla do tempo. Há o tempo dos acontecimentos de cada episódio; o tempo mais lento da trama central da temporada; e o tempo da série como um todo, que é muito mais semelhante ao tempo da vida do que qualquer outra arte narrativa é capaz de ser. Há seriados que valem pela forma acabada de seus episódios, como os C.S.I.. Há outros cujas temporadas valem por si, como várias de The Walking Dead. Mas os realmente grandes transformam seus episódios e temporadas em conteúdos de uma forma maior e mais significativa, como Breaking Bad, cujo título expressa sua forma.
Stranger Things está longe de terminar, mas quando o seriado é bom é perfeitamente possível antever essa forma final muito antes do seu fim. Claro que é possível estragarem completamente a série, deformarem a forma que se revelou nesta segunda temporada, mas até aqui é bem promissora. Que forma seria essa? A forma universal da passagem da infância para a juventude e desta para a maturidade. Ou seja, a forma da perda inevitável da inocência e as tentativas de recuperá-la.
I. A Inocência Perdida
Começo pelas crianças. Nesta segunda temporada parece que os personagens de Dustin e Lucas ganharam destaque muito maior do que Mike e Eleven, protagonistas da primeira temporada. Só parece. A temporada já começa bem por costurar com perfeição a passagem do tempo, um ano, desde os eventos da primeira. Mike e Eleven saíram muito mais marcados daquela experiência do que Dustin e Lucas. A história de ambos agora é da ausência de um para com o outro. É uma história de espera e luta interior para não perder a esperança. Por isso ambos não conseguem seguir adiante, não têm outra vida senão aquela que ficou no passado.
Daí o apego de Mike por Will e o sentimento constante de luto na fase de negação, de não querer acreditar que Eleven possa ter morrido. O grande momento de Mike é quando “explode” com o xerife ao descobrir o que ele fez por Eleven, porque ninguém poderia ter feito algo pior para ele do que escondê-la querendo convencer a todos que morrera. Já Eleven estava encalhada e, para desencalhar, precisava se desgarrar do xerife e encontrar um meio de conquistar uma vida normal. Por isso seu desenvolvimento não poderia se dar junto dos demais, daí a necessidade do episódio em que ela vai à “cidade grande” onde ninguém a conhece e é simbolicamente também um “mundo invertido” da cidadezinha de Hawkins. O encontro da sua “irmã” faz Eleven começar a aprender a usar seus poderes e, mais do que isso, tomar consciência de que ela não quer ser uma revoltada como a “irmã”, mas que tem amigos e é para eles que tem de voltar.
É evidente que ambos os personagens, Mike e Eleven, perderam a inocência infantil, ou seja, aquela inocência ignorante do mal. Agora o conhecem, experimentaram seu amargor e sua presença constante. Assim como Will, magistralmente interpretado por Noah Schnapp, que quase não fala nas duas temporadas, sendo o símbolo por excelência da inocência infantil impotente contra o mal e quase destruída por ele.
O mesmo não se deu com Dustin e Lucas, que encantam nesta temporada como os últimos inocentes, especialmente Dustin, o personagem preferido de 11 em cada 10 fãs do seriado. A disputa de ambos por Max, a nova personagem, poderia decretar o fim da amizade deles e, com isso, o fim da inocência. Mas Dustin não permite que isso aconteça quando vê que perdeu a parada para Lucas e saiu imediatamente procurando outra para dançar no baile que encerrou a temporada. É ali que ele perderia sua inocência ao ser rejeitado por todas que convidava para dançar, não fosse por Nancy, que numa cena comovente possibilitou um final feliz típico de um conto de fadas como Cinderela, com Dustin poupado e até exaltado perante as rejeitadoras.
II. A Ingenuidade Desiludida
As cenas mais significativas da temporada acontecem nesse baile, simbolizando a passagem da infância para a adolescência, para a inocência transformada em ingenuidade, especialmente sexual. É a inocência de que o primeiro beijo, o primeiro namoro, a primeira vez de quase tudo, seja a realização do Paraíso na terra. Não é, nunca será, mas todos precisamos passar por essas experiências que sempre são devastadas pela desilusão de amores desfeitos e corações partidos, como o de Steve, típico aborrescente na primeira temporada e que amadureceu “na medida” nesta segunda, tornando-se no fim um jovem adulto já com alguma bagagem de vida, muito pelo romance frustrado com Nancy.
Essa maturidade de adulto se revela no olhar dele para Nancy quando deixa Dustin no baile, assim como por assumir o papel de irmão mais velho deste. O desenvolvimento da maturidade de Steve é o caminho natural para as próximas temporadas, como já começou nesta para o dos demais personagens jovens, Nancy e Johnathan. Nancy perdeu todo interesse por Steve justamente por isso e se aproximou de Johnathan muito mais por terem em comum a marca do sofrimento desse amadurecimento que sempre vem acompanhado por responsabilidades exigindo serem assumidas. Johnathan foi forçado a amadurecer antes da hora ao ter de assumir o papel de pai de Will, enquanto Nancy não suportava a consciência culpada por não contar aos pais da amiga que ela tinha morrido, não apenas desaparecido. Ela sentia que era seu dever contar e fez o possível para que isso acontecesse, com ajuda de Johnathan. Steve, por sua vez, só queria tocar a vida adiante como qualquer garoto de ensino médio. Não sentia essa responsabilidade.
Embora estivessem assumindo responsabilidades, que é a marca distintiva da conquista do mundo adulto, Nancy e Johnathan ainda não eram adultos e por isso mantiveram a ingenuidade característica da juventude, como a de não perceberem a atração mútua evidente e ficaram como crianças com vergonha quando isso foi revelado por Murray.
III. A Bondade Imprudente
O mundo adulto do filme é coadjuvante, mas nesta segunda temporada começou a ser melhor desenvolvido, a começar pelo xerife Hopper, o grande responsável pela segurança de toda a cidade e por isso mesmo conteve toda a história da primeira temporada, mantendo os não envolvidos na quase completa inocência a respeito. Para tanto, teve de assumir o papel de pai de Eleven e as consequências dessa decisão que mudaram sua vida.
Mas isso ainda está no pano de fundo do seriado, como também está Joyce, a mãe de Will, cuja vida foi destroçada pelo abandono do marido e até aqui viveu inteiramente devotada aos filhos. Se Hopper é um adulto completo com uma tragédia no passado – a perda da filha – absorvida nos deveres do presente, Joyce por sua vez está empacada na vida, não raro tendo de ser cuidada por Johnathan, seu filho mais velho. Sua chance de reconstruir a vida aparece nessa temporada com o namoro com Bob, mas é frustrada pelo que acontece com ele.
Bob, aliás, é de longe o novo personagem mais interessante da temporada e o mais simbólico de tudo o que tratei até aqui. Bob é um homem adulto, mas parece uma criança. A inocência preservada num homem adulto se transforma em bondade. Mas a inocência não foi feita para ser preservada, e sim perdida para ser reconquistada como simplicidade prudente. Bob é unidimensional, nenhum mal parece lhe afetar, nem ele parece capaz de fazer algum. Está sempre feliz e de bem com a vida. É um Dustin crescido.
Não há quem não simpatize com ele, mas sua bondade esfuziante é como a simplicidade das pombas sem a prudência das serpentes. Por isso, quando tenta assumir o papel de pai de Will, falha miseravelmente. É justamente seu conselho péssimo que levará o menino a ser possuído pelo monstro da temporada. Embora seu fim seja heroico, há menos consciência de heroísmo em seu ato do que imprudência. No fundo, ele não acreditava que algo ruim fosse lhe acontecer.
Isso não quer dizer que Bob foi tratado na série como um tolo ridículo. Ele era motivo de riso, mas uma das melhores coisas de Stranger Things é jamais contar a história num estilo realista satírico e sim com uma compaixão que enobrece os personagens. Não há quem não se comova com o fim de Bob, mesmo sabendo perfeitamente que aquilo fatalmente iria acontecer. Jamais será lembrado como um bobo da corte, mas como o homem bom que de fato era.
IV. A Inocência Restaurada
Filmes de terror podem ser censurados às crianças por conta dos horrores e exageros de violência explícita, mas as grandes histórias de terror são infantis. Sim, pois numa história de terror o mal é claramente o mal, sem ambiguidade. E isso é infantil, no bom sentido da palavra. Por isso toda história de terror é sempre a história do bicho papão, do monstro que vem para nos matar, desordenar as coisas, vindo de um “mundo invertido” ao nosso. Para vencê-lo, os personagens têm de se unir e optar pelo Bem. Toda boa história de terror, portanto, é uma história de nascimento de heróis por força das circunstâncias, como acontece com todos os personagens importantes de Stranger Things.
No fim, toda história de terror também é uma história da inocência perdida pelo mal manifestado, ainda que vencido. Só a mansidão da velhice de uma vida bem vivida, ou seja, de alguém que lutou o bom combate, pode restaurar a inocência perdida. Daí porque rabugice é coisa de frustrados, tanto faz a idade. Daí também porque tantos velhinhos se tornam como crianças, permitindo-se simplesmente viver sem se preocupar com o que dizem. Melhor velhice não há.
Não há velhos em Stranger Things, mas a compaixão enobrecedora com que a história é contada é digna dessa inocência restaurada. Já reparou como mesmo os personagens “malvados”, como o novato Billy nesta segunda temporada, são tratados com compaixão? Por exemplo, a cena dele com o pai, em que compreendemos melhor por que ele era como era. Essa compreensão compassiva é o que dá forma ao seriado, que tem seu ponto mais alto na cena já citada em que Nancy tira Dustin para dançar. É impossível não sorrir.
Por isso, todas as inúmeras referências e ambientações que nos devolvem aos anos 80, permitindo reviver o que foi vivido ou experimentar como teria sido viver aquele que não viveu, vão muito além da mera nostalgia, sentimento mais ligado à tristeza e melancolia pelo que passou, mas dão forma à presença da inocência restaurada que nos faz voltar a ser criança, tanto fazendo a época em que você viveu sua infância. Só a verdadeira obra de arte consegue isso. Stranger Things já é memorável.
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