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Succession, Cidadão Kane e a nobreza humana
| Foto: Divulgação

“A vida não é nada além de uma competição para ser o criminoso e não a vítima.” Segundo um personagem no seriado Succession (S01E05), essa frase seria do filósofo Bertrand Russell. A vida real não é isso, claro, mas que a frase resume perfeitamente bem o que é a vida no seriado, ah, resume.

“Favorecido” por uma faringite que se tornou sinusite e que resultou, ao que parece, num princípio de pneumonia (talvez tuberculose), passei a semana naquele limbo de convalescência masculina assistindo filmes e séries de gente morrendo. Aliás, boa forma de resolver essas dúvidas todas sobre gênero é deixar o ser gripado. Se padecer como quem está morrendo, é homem, não resta a menor dúvida.

Enfim, acabei maratonando o seriado badalado do momento, embora desconfie que é badalado somente dentro da bolha da mídia e beautiful people, não sendo popular de fato. Ao menos não como foi Dallas - quem lembra? - cuja história também era de uma família muito rica etc e tal.

Há quem tenha achado o seriado um novelão, vendo nisso um defeito. Até entendo enxergá-lo assim (e não vejo novelão como algo ruim, embora costume ser), mas não é. Em novelões jamais teríamos um episódio como o terceiro da última temporada, beirando a perfeição. O seriado inteiro já valeria a pena só por este episódio.

Succession é inspirada explicitamente em Rei Lear, de Shakespeare. Não apenas pelas citações frequentes da peça nos episódios do seriado, mas principalmente pelo espelhamento entre os personagens principais e a própria estrutura da trama. E desconfio que despertou a curiosidade de muitos para ler ou assistir Shakespeare. Se isso aconteceu, é de reabastecer a esperança da possibilidade da humanidade ser re-humanizada.

Mas Succession é Rei Lear sem nobreza, uma tragédia irônica. Todos os personagens são desprezíveis, em maior ou menor medida. E todos perdem no fim, inclusive o que aparentemente venceu, pois, na realidade, permaneceu sendo o que era, o perfeito bode expiatório para quem realmente detém o poder.

Se isso aconteceu, é de reabastecer a esperança da possibilidade da humanidade ser re-humanizada

Qual a catarse aí? Sendo o fim de toda tragédia, segundo Aristóteles, que paixões poderiam ser purificadas, purgadas, em Succession? Ganância, inveja, desejo de poder, seriam as mais óbvias. Mas o fim do seriado é menos catártico do que poderia ser, encerrando sem grande clímax, com um dos personagens literalmente pensando na vida diante da aparente perda de tudo (não perdeu, ficou mais rico ainda, mas que importa o dinheiro diante da perda do poder e da humilhação do ego?). Assim fiquei também a pensar.

Fiquei pensando na “ricopatia” dos filhos de Roy Logan, suas profundas solidões e dependência emocional do pai, que sabia manipular com maestria a fragilidade deles. A cena da caixa com donuts enviada quando os filhos estavam reunidos planejando um golpe é perfeito exemplo disso, um gesto na medida exata para desestabilizá-los e vencer sem parecer nem ter jogado.

Fiquei pensando também na força titânica do egoísmo do patriarca, sua frieza brutal, todo seu poder que construiu um império infernal, no qual mantinha a todos enredados pela ganância e inveja, competindo para ver quem se tornaria o pior de todos, mas jamais a vítima. No fim das contas, terminou tão solitário quanto os filhos.

Essa solidão me fez lembrar de outra obra prima que, se não influenciou o seriado, conversa de perto com ele: Cidadão Kane. Decidi reassisti-lo. A perfeição formal desse filme sempre me impressiona, como se o assistisse pela primeira vez.

Aqui, sim, a catarse no espectador pode acontecer de forma clara, com a resposta à pergunta “vale a pena ter todo o dinheiro e poder do mundo?” mais do que respondida e condensada num símbolo poderoso, composto não apenas do famoso Rosebud e que pode ser resumido também do quadro inicial e final do filme: um aviso de “não ultrapasse” pendurado numa cerca a separar o interior da mansão Kane do mundo exterior.

É justamente o que o filme faz conosco, ultrapassamos o que somente desconfiamos, conhecendo a realidade interior de Kane melhor do que qualquer personagem, talvez melhor do que ele mesmo, focando naquilo que realmente daria sentido à vida e ele possuía na infância e que, no momento, ele só conseguia se remoer por ter perdido pelo caminho.

Talvez seja para lá também que o personagem de Kendall Roy, que aparece na última semana de Succession, esteja começando a se voltar naquele pensar com olhar perdido no horizonte. Quem sabe caia a ficha, e aí sim teremos catarse, de que vivia numa competição para ser criminoso, descobrindo que recusar esse jogo demoníaco não faria dele uma vítima, mas um vitorioso. E aí a nobreza humana começaria a ser restaurada.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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