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Não lembro qual humorista vi fazendo essa piada, acho que foi Diogo Portugal: é tanto pedinte nas ruas usando a mesma tática do cartaz com uma história triste implorando ajuda que deve ter algum “coach de mendigos” por aí ensinando como fazer. Lembrei dela agora há pouco, andando de carro pela cidade e fazendo as contas de quais esquinas não teriam ao menos um com seu cartaz (alguns são até plotados). Foram poucas sem algum, e olha que rodei bastante.
Desta vez não ri. Acho que é efeito da leitura dos livros da Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de 2015. Fiquei a imaginá-la escrevendo um livro sobre esses mendigos, feito apenas dos relatos deles, como fez em todos os seus livros. Das histórias das mulheres soviéticas que combateram na Segunda Guerra (A Guerra Não Tem Rosto de Mulher); também a das crianças que a padeceram (As Últimas Testemunhas); depois, a dos soldados soviéticos que lutaram no Afeganistão (Meninos de Zinco); a das vítimas do desastre de Tchernóbil (Vozes de Tchernóbil); culminando nos relatos das tragédias e sofrimentos pelo fim da União Soviética (O Fim do Homem Soviético), em todos há uma polifonia de vozes sofridas, entre desistentes da vida, revoltadas ou desorientadas, todas contando histórias trágicas.
A compaixão, enfim, o que nos tornaria humanos. É impossível não senti-la lendo os livros de Svetlana Alexiévitch
Por isso, nenhum livro dela é fácil de ler. É preciso fazer várias pausas, respirar, para poder suportar tanto sofrimento, tantas lágrimas que tornam pequeno o vale de proporções bíblicas. Ela pouco fala em seus livros, costura os relatos como uma maestrina a conduzir as vozes formando um lamento único. É no seu primeiro livro, A Guerra Não tem Rosto de Mulher, que se expõe um pouco mais:
“O que fica gravado na memória, mais do que tudo? Lembro de uma voz humana baixa, muitas vezes atônita. Uma pessoa que experimenta o espanto diante de si mesma, diante do que aconteceu com ela. O passado desapareceu, foi ofuscado por um turbilhão quente e se escondeu, mas a pessoa ficou. Ficou em meio à vida cotidiana. Tudo ao seu redor é costumeiro, menos a memória. Eu também me transformo em testemunha. Testemunha daquilo que as pessoas se lembram, e de como se lembram, do que querem falar, e do que tentam esquecer ou afastar para o canto mais distante da memória. Fechar a cortina. De como elas se desesperam na busca pelas palavras, e mesmo assim querem reconstituir o que desapareceu, na esperança que a distância permita captar o sentido completo do passado. Ver e entender o que não viram e o que não entenderam na época. Lá. Examinam a si mesmas, se reencontram de novo. Muitas vezes já são duas pessoas – aquela e essa, uma jovem e uma velha. (...) Sou o tempo todo tomada pela sensação de que estou escutando duas vozes ao mesmo tempo. Depois de muitos anos de distanciamento, alguns fatos de repente se ampliavam, outros diminuíam. Ampliava-se também o que era humano, íntimo, e isso passou a ser, para mim, o mais curioso: até para elas mesmas era o mais interessante e próximo. O humano vencia o desumano, simplesmente porque era humano.”
Esse primeiro livro de Svetlana foi escrito entre 1978 e 1985, publicado neste mesmo ano. Quando das entrevistas na premiação do Nobel, em 2015, assim ela falou sobre o que buscava com seus livros: “Sempre mirei em entender quanto de humanidade é contida em cada ser humano, e como posso proteger essa humanidade na pessoa”. Proteger a humanidade na pessoa... Isso me deixou pensativo. Reconstruo as imagens dos pedintes, tento enxergar o humano vencendo o desumano. Com esmolas ganhas? Talvez, mas é difícil entender, até de aceitar. Mas o que seria exatamente essa humanidade em nós? Voltando ao livro, uma pista do que ela encontrou:
“O gravador registra as palavras, conserva a entonação... As pausas. O choro e o embaraço. Entendo que quando uma pessoa está falando acontece algo maior do que o que fica no papel depois. Lamento o tempo todo por não poder ‘gravar’ os olhos, as mãos. A vida delas na época da conversa, a vida pessoal. Separada. Seus ‘textos’. Tento reduzir a grande história a uma escala humana para entender alguma coisa. Encontrar as palavras. Mas parece que, nesse território pequeno e cômodo para o olhar – o espaço de uma alma humana –, tudo é ainda mais incompreensível, menos previsível do que na história. Tenho diante de mim lágrimas vivas, sentimentos vivos. Uma face viva, humana, pela qual passam sombras de dor e medo durante a conversa. Às vezes até se insinua a ideia subversiva de uma quase imperceptível beleza do sofrimento humano. E então me assusto comigo mesma... O caminho é um só: amar o ser humano. Compreendê-lo pelo amor.”
A compaixão, enfim, o que nos tornaria humanos. É impossível não senti-la lendo os livros de Svetlana, não ficar a pensar no antes e depois daquelas vozes terem falado, do sofrimento que trouxeram e continuaram a carregar depois. Volto aos mendigos, nas esmolas que dei, no esquecimento em segundos daquelas pessoas. Pessoas... A humanidade nelas... Por isso não consegui mais rir daquela piada, que é boa.
Em outra entrevista, Svetlana disse: “Procurei o que mais me aproxima da vida real. A realidade me atrai como um imã, me tortura e hipnotiza, quero capturá-la no papel. Imediatamente me apropriei desse gênero de vozes humanas reais e suas confissões, testemunhos e documentos. É assim que escuto e vejo o mundo – como um coral de vozes individuais e uma colagem dos detalhes do dia a dia. É assim que meu olho e ouvido funcionam. Desta forma todo meu potencial mental e emocional é realizado plenamente e posso ser ao mesmo tempo escritora, repórter, socióloga, psicóloga e pregadora”.
Na verdade, conseguiu muito mais do que ser essas coisas, conseguiu ser humana. E, com isso, despertar o humano em seus leitores. Não é pouca coisa.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos