| Foto: Agência Pará/Divulgação
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Acho, sinceramente acho, que nos habituamos tanto com a nossa corrosão moral que não conseguimos mais dimensionar o caos em que vivemos. Um exemplo gritante disso é como estão “informando” a realidade do desenvolvimento da pandemia. E coloquei entre aspas porque não se trata, em verdade, de informar.

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Somos bombardeados, por absolutamente todos os órgãos de imprensa, com manchetes divulgando o número de mortes “nas últimas 24 horas”. De novo, vai entre aspas porque não é a informação correta. O que se atualiza diariamente é o número de mortes confirmadas por Covid-19 que aconteceram não apenas nas últimas 24 horas, mas também em dias anteriores. Não é pouca diferença para não ser devidamente informada em manchete. Percebendo isso, tenho me informado tão somente pelos boletins epidemiológicos semanais do Ministério da Saúde. E quando você faz isso começa a ter noção da gravidade do que parece apenas um equívoco do noticiário da imprensa.

Por causa dessa defasagem temporal entre o dia da morte e o de sua confirmação, a melhor forma de enxergar a realidade das mortes diárias é voltar alguns dias atrás. Voltemos ao dia 18 de abril. Eis uma das manchetes daquele dia: “Coronavírus: com 206 mortes nas últimas 24 horas, Brasil tem 2.347 óbitos”. Agora, se você consultar o boletim epidemiológico daquela semana do Ministério da Saúde, verá que naquelas 24 horas do dia 18 constam 28 mortes por Covid-19. Está lá na página 17 do documento que segue disponível no site do Ministério para quem quiser ler.

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Não somos “vítimas” de uma “imprensa canalha”, somos todos cúmplices da canalhice, ainda que em graus diversos

Mas, lembre-se, é preciso esperar para saber o número exato ou mais próximo da realidade, pois as mortes vão sendo investigadas e confirmadas no correr dos dias. Significa dizer que também aquelas 28 mortes não são o número certo. Se formos consultar o último boletim do Ministério da Saúde divulgado até aqui, o número de mortes confirmadas naquele dia subiu para 150, havendo ainda um porcentual de mortes sendo investigadas para aquele dia, conforme consta da página 26, mas que não chegará às 206 divulgadas como se tivessem acontecido no dia 28. E, ainda que venham a ser ou até mais do que isso, nada justifica que tenha sido noticiado como foi, como tem sido feito todos os dias dessa pandemia.

Para tornar a coisa ainda pior, pense nos tais “modelos matemáticos” usando a premissa errada para avaliar a tal da “curva” de crescimento dos mortos pela doença. Confiando nessa irresponsável forma de informar, o cálculo pelas confirmações, não pelas mortes ocorridas a cada dia, mostra crescimento e piora da situação, mas, se feita com base no dia dos óbitos, a curva não mostra crescimento há vários dias já. Basta olhar o gráfico na mesma página 26 do referido boletim para se constatar isso.

Não sei quanto a você, leitor habituado como eu, mas esses “erros” já não me espantam, embora devessem me espantar. Digo “paciência, melhor não me informar mais pela imprensa” e assim faço, como se isso fosse quase nada. Mas é muito. Estamos no terreno daquela tríade conhecida no direito penal: imperícia, negligência ou imprudência. Isso se não houver intenção de alguns ou muitos em mal informar mesmo. Mas assim não parece porque essa corrosão moral também nos consome. Não somos “vítimas” de uma “imprensa canalha”, somos todos cúmplices da canalhice, ainda que em graus diversos.

A situação moral é tão baixa que na semana que passou vimos um dos mais tradicionais órgãos de imprensa do país, o jornal Folha de S.Paulo, indo ao Twitter vangloriar-se confrontando influenciadores digitais para mostrar que faz jornalismo (referindo-se à saída do ex-ministro Sergio Moro, noticiada antes de ela ocorrer, em verdadeiro e grande furo de reportagem) e não outra coisa. Ora, mas se precisa dizer isso é porque o jornalismo se tornou a exceção, não a regra. Além do que, ao se contrapor a esses influenciadores, apenas confessou que está no mesmo ringue que eles. Eles fazem jornalismo? E o jornal pode ter ganhado esse round, mas quantos outros não perdeu nessa luta infame e infinda?

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Aliás, a saída de Sergio Moro do governo retrata à perfeição esse rebaixar de tudo à disputa política mais imediata e mesquinha. O que se viu e se vê pelas redes sociais em decorrência da saída do ex-ministro foi e é um show de horrores de celebração mórbida por quem torce pela queda do governo e tentativas asquerosas de assassinato de reputação do ex-ministro por quem horas antes o tratava como herói nacional. Acontece que estamos longe de saber exatamente o que houve. A história está muito mal contada dos dois lados, com deslealdade mútua, no mínimo, pouco importando quem teria traído antes ou mais.

Seria o caso de citar Nelson Rodrigues: “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”. Mas já passamos do chão da imbecilidade, estamos no subsolo da putrefação moral. Então, Nelson não merece ser citado nesse contexto, acho mais condizente com nossa estatura moral a estética artística dos anos 1980.

A saída de Sergio Moro do governo retrata à perfeição esse rebaixar de tudo à disputa política mais imediata e mesquinha

O país parece todo caber, por exemplo, numa música de uma banda esquecida dos anos 80, Dr. Silvana e Cia. A música é Taca a mãe pra ver se quica, em cuja letra se diz: “Tacaram uma pedra no meu telhado / Não sei qual é o vizinho que comigo implica / Olhei lá pra cima, muito irritado / E disse taca a tua mãe pra ver se quica / (...) / De repente eu escutei um berro / Uma velha gritando, uma velha gritando / Agarrada a porta da janela / E alguém a empurrando, alguém a empurrando / (...) / A velha aterrissou no meio da sala / Te juro, por milagre não empacotou / Com medo do incidente fui fazer minha mala / E te confesso a velha não quicou!”.

E é isso, todo o absurdo da briga, de “tacar” a mãe (a verdade dos números sobre a Covid, sobre as razões da saída do ex-ministro e tantas outras) fora pra vencer a briga, pra “ter razão” no fim das contas, não espanta mais do que a descoberta de que “a velha não quicou”. E não nos enganemos achando que escapamos dessa realidade, que somos “melhores”. Não somos. Estamos na melhor das hipóteses como o protagonista de Nostradamus, música de um dos artistas mais criativos dos anos 80, Eduardo Dussek, que, deparando-se com a realidade em que vive, profetizou nosso futuro dizendo:

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De repente na minha frente
A esquadria de alumínio caiu
Junto com vidro fumê
O que fazer? Tudo ruiu
Começou tudo a carcomer
Gritei, ninguém ouviu
E olha que eu ainda fiz psiu!

O dia ficou noite
O sol foi pro além
Eu preciso de alguém
Vou até a cozinha
Encontro Carlota, a cozinheira, morta
Diante do meu pé, Zé
Eu falei, eu gritei, eu implorei:
"Levanta e serve um café
Que o mundo acabou!"