Esta pergunta está em forma de verso na canção The Hurting, primeira faixa do primeiro disco, que leva o mesmo título, do Tears For Fears. Álbum que fará aniversário de 40 anos em 2023, mas que já merece revisita por causa do último disco lançado recentemente pela dupla, chamado The Tipping Point, que, em certo sentido, responde àquela e outras perguntas deixadas sem solução em The Hurting.
Em 1983, Roland Orzabal e Curt Smith, a dupla que compõe o Tears For Fears, tinham 22 anos. O nome escolhido para o duo foi inspirado na psicoterapia de Arthur Janov, especialmente do seu livro Primal Scream, que influenciou também outros artistas, como John Lennon. Em linhas gerais, trata-se de uma teoria que considera a neurose causada por dores reprimidas na infância e propõe uma terapia para a tomada de consciência da dor reprimida, conectando-a com um sentido que a explicaria, libertando o paciente da neurose.
É uma teoria com várias falhas e uma terapia de duvidosa eficiência, com várias críticas feitas ao longo dos anos por especialistas, mas não é isso que me interessa aqui. O que importa é que tanto Orzabal quanto Smith encontraram nela uma espécie de “explicação” para serem quem estavam sendo. Orzabal, por exemplo, testemunhava sua mãe ser abusada por seu pai (Woman In Chains é sobre isso, aliás), enquanto Smith chegou a praticar pequenos furtos, em típica revolta adolescente contra o pai. Ambos se tornaram amigos por causa dessa realidade em comum, com a teoria de Janov ajudando ambos a se entenderem um pouco melhor. Nunca foram pacientes dele, nem fizeram sua terapia, mas não acho exagero afirmar que aplicaram a teoria em suas músicas, criando uma terapia particular que se iniciou com The Hurting e, ouso dizer, se encerrou agora com The Tipping Point.
Os sintetizadores dos anos 1980 parecem brinquedos de criança perto da “eletrônica” de hoje em dia. Mas, em termos de criatividade, bandas como Tears For Fears nada ficam devendo, pelo contrário
The Hurting é um disco “emocionalmente vulnerável”, segundo confessou Orzabal em entrevistas. Trata não apenas de dores do passado, mas também do momento que viviam, por não entenderem o mundo enlouquecido à sua volta (Mad World), cantando as dificuldades de relacionamento (Pale Shelter), questionando as ideias que incendiavam (e continuam) as mentes dos jovens, como as de Karl Marx (Ideas Are Opiate), sofrendo por não saber quem eram ou deveriam ser (Memories Fade), procurando mudanças sem saber ao certo o que fazer (Change), no fim pouco entendendo de si e dos outros, terminando por deixar perguntas sem respostas, como na última do disco, se não seria o início do colapso (Start Of The Breakdown).
Para a carreira de ambos, porém, foi o início do sucesso. Tornaram-se muito famosos nos anos 1980, sendo uma das maiores influências do que viria depois a ser chamada de “música eletrônica”. Mal comparando, a diferença é como a do cinema mudo para o dos filmes live action de hoje. Em termos técnicos, os sintetizadores dos anos 1980 parecem brinquedos de criança perto da “eletrônica” de hoje em dia. Mas, em termos de criatividade, bandas como Tears For Fears nada ficam devendo, pelo contrário. Tanto é que o duo costuma ser regravado com frequência (como a versão de Lorde para Everybody Wants To Rule The World) e ter músicas sampleadas por ícones atuais do pop, como Kanye West, que usou Memories Fade em sua música Coldest Winter.
Nos anos 1990, porém, a dupla se separou, por motivos que nem eles mesmos conseguiram considerar relevantes anos depois. Aquela mistura de sucesso que subiu à cabeça, desgaste da relação, cansaço e a incerteza sobre quem deveriam ser, como pessoas, não apenas artistas, como Smith admitiu em entrevista recente. Aquelas perguntas ainda rondavam a vida de ambos, portanto, como se constata tanto no segundo disco, Songs From The Big Chair, de 1985, em músicas como I Believe: “Acredito que quando o sofrimento e a dor tiverem desaparecido, seremos fortes”, quanto no terceiro, The Seeds Of Love, de 1989, último antes de se separarem, como cantam em Advice For The Young At Heart, que em breve estariam velhos e se perguntaram: “Quando conseguiremos fazer dar certo?” Veio o declínio. Orzabal seguiu lançando discos usando o nome da banda, enquanto Smith seguiu carreira solo, mas nenhum conseguiu atingir o mesmo sucesso, nem de longe.
Ambos casaram, constituíram suas famílias, amadurecendo com o tempo que fez com que voltassem a conversar nos anos 2000, dando-se conta de que juntos eram melhores. Decidiram retomar a parceria e aos quarenta e poucos anos lançaram novo disco, em 2004, Everybody Loves a Happy Ending, com a maturidade mudando a forma de enxergarem o sofrimento, aceitando-o. Em Size of Sorrow, cantam que entendem a dor e que “às vezes você apenas a engole”, enquanto que em Last Days On Earth, última do disco, completam: “Fale da dor pela última vez / como um eco numa caverna / deixe-a morrer em sua mente”.
Nos anos seguintes, seguiram o script de tantas outras bandas “das antigas”, fazendo turnês pelo mundo tocando mais para a geração que cresceu junto com eles do que as mais novas. Por isso mesmo, seus produtores queriam conquistar novo público, o que tentaram fazendo com que o duo fizesse parcerias com artistas mais novos e famosos da atualidade, buscando criar novos hits de sucesso em um novo disco. Isso começou em 2013, mas ambos não estavam gostando do resultado, o projeto foi esfriando e ficando para depois.
A tragédia da morte de Caroline, esposa de Orzabal, não foi o fim, mas um verdadeiro recomeço, um “ponto de virada”, para ficar na tradução literal para “The Tipping Point”, o disco mais “terapêutico” da dupla
Neste ínterim, veio mais sofrimento, talvez o pior até aqui. Orzabal enfrentou uma tragédia: sua esposa, Caroline, com quem estava desde a adolescência, morreu em 2017, em decorrência do alcoolismo, depois de um período padecendo no hospital. Para se ter uma medida desse sofrimento, escute The Tipping Point, que o retrata contemplando a esposa no leito do hospital, vendo a morte se instalando aos poucos, sofrendo por saber que todo o seu amor seria insuficiente para salvá-la, cantando: “Você sabe que não posso amá-la mais do que amo”.
Para piorar, depois do falecimento, Orzabal, não sabendo lidar com o luto, também se refugiou na bebida, precisando ser internado. Smith, por sua vez, que também era amigo de infância de Caroline, sofria tanto pela morte da amiga quanto por Orzabal, sem saber se e quando retomariam o trabalho. Até pela idade de ambos, próximos dos 60 anos. E é como se voltássemos ao início da carreira da banda, ouvindo os versos finais da primeira música de The Hurting, que leva o mesmo título: “É um sonho horrível? A dor, dor, dor...”.
Felizmente, não foi o fim, mas um verdadeiro recomeço, um “ponto de virada”, para ficar na tradução literal para “The Tipping Point”, o disco mais “terapêutico” da dupla, segundo Smith disse em entrevista recente: “Foi o mais prazeroso e mais terapêutico momento de nossa história juntos. Para acabar em um lugar muito melhor do que estávamos quando começamos”. Conheceremos esse “lugar” na semana que vem.